Prof. Dr.
Vilson Scholz
1. Ao contrário daqueles que entendem que, no início, a igreja tinha apenas uma liderança “carismática”,[1] no sentido de que não havia um ofício pastoral institucionalizado, é possível afirmar que as igrejas cristãs nunca estiveram sem liderança pastoral. Além do relato de Atos, em que se vê Paulo promovendo a eleição de presbíteros, a abertura da carta aos Filipenses revela que já no período inicial as igrejas paulinas tinham uma liderança de “bispos e diáconos” (Fp 1.1).[2]
2. Paulo trata do
ministério em praticamente todas as suas epístolas, com destaque para
2Coríntios. Se levarmos em conta o Novo Testamento como um todo, e não só as
cartas paulinas, há uma série de textos em destaque, quando o assunto é
ministério pastoral: 1Timóteo 3.1-7; 5.17; Tito 1.5-9; Atos 20.17-38; Efésios 4.7-16;
Hebreus 13.7-17 e 1Pedro 5.1-4. A essa lista tradicional cabe acrescentar o
capítulo dois de 1Tessalonicenses.
3. O verdadeiro
pastor da Igreja é o próprio Cristo, que é o archipoimen ou supremo pastor (1Pe 5.4). Todos os outros são subpastores
que atuam segundo o modelo de Cristo e em nome ou lugar dele. Pode-se, portanto,
esperar que a face de Cristo seja vista no rosto do pastor. A ausência disso
compromete a autenticidade do pastor. O aspecto do serviço (Mc 10.45) é
característica fundamental. Não como dominadores do rebanho, diz Pedro.
4. O ministério
pastoral é apostólico e, por isso, a reflexão em torno do tema precisa começar
com os apóstolos. Estes são, de certo modo, “anteriores” à igreja, embora se
possa dizer que são também o núcleo inicial da igreja. Ao chamá-los, Jesus
estabeleceu o núcleo de sua igreja e “instituiu” o ministério, na medida em que,
como representantes autorizados ou “procuradores”, os apóstolos dariam
continuidade ao serviço de ensino que o próprio Cristo iniciou. Assim, se
quisermos ser exatos, não podemos dizer que os apóstolos detêm um ofício eclesiástico, pois de uma forma toda
especial eles estão ligados e “subordinados” a Cristo e, neste sentido, se
inserem no evento revelador de Deus em Jesus Cristo, como testemunhas autênticas
da pessoa e obra de Jesus. Os apóstolos são extensão de Cristo e não ministros da igreja, como se fossem
uma instituição desta ou um ofício que a igreja inventou, embora sirvam à
Igreja, sendo também eles próprios igreja.
Os apóstolos são o fundamento ou alicerce da igreja para
todos os tempos e em todos os lugares. O ministério de hoje é apostólico apenas
no sentido de que está conectado com o testemunho apostólico de Cristo no
evangelho, na medida em que o ministério de hoje passa adiante, na proclamação
e no ensino, a palavra de Deus que os apóstolos nos legaram. O Cristo anunciado
hoje, pelo ministério eclesiástico, é o Senhor do qual os apóstolos dão
testemunho. Neste sentido, todos os pastores da igreja são “apostólicos”, do
mesmo modo que a igreja, como corpo de Cristo, é “apostólica”. À luz disto,
fica claro quão inapropriado é alguém autodenominar-se “apóstolo” na igreja de
hoje.[3]
5. O fato de os
apóstolos serem também o núcleo da igreja – e, conforme o texto de Efésios, o
seu alicerce, sendo Cristo a pedra angular – permite afirmar que é impossível
separar igreja e ministério um do outro. O que é dito da igreja é dito do
ministério, e vice-versa. O ministério não se encontra acima da igreja, mas
invariavelmente dentro dela. Isto requer ênfase, pois é muito fácil passar de
servo a senhor,[4]
de pastor a dominador do rebanho. Neste sentido, certas formulações em
traduções bíblicas são tudo menos inocentes. Um exemplo típico é o uso de
“sobre o qual (rebanho)” na tradução de Almeida, em At 20.28, quando o texto
original diz “no qual o Espírito
Santo vos constituiu bispos”. Outro exemplo é 1Ts 5.12, na antiga Almeida (Almeida
Revista e Corrigida): os que “presidem sobre vós”, um texto que foi
neutralizado na Almeida Revista e Atualizada: “vos presidem”. Mais impactante
do que tudo isso deveria ser o modelo de Paulo, que se apresenta, em 2Co 1.24,
como “cooperador da vossa alegria”. Outro texto que trata disso é 1Ts 2.7.
Por outro lado, a congregação não tem domínio sobre o
ministério do evangelho (Gl 1), como se pudesse a seu bel-prazer alterar a
pregação. Igreja e ministério têm acima de si o único Senhor, no qual são um. A
obediência de que fala Hb 13.17 é obediência em relação ao testemunho da
palavra de Deus. Esta obediência inclui o exame do que é anunciado. Afinal, a
igreja ou o grupo dos que ouvem não está sem a palavra do Novo Testamento, resumida
e explanada nas Confissões Luteranas, que funciona como norma ou critério. A
igreja tem o direito e a obrigação de julgar doutrina. Lutero fundamenta isso
em Jo 10.27: as ovelhas podem e precisam dizer se a voz que ouvem é do bom
pastor ou não. É claro que a igreja sabe que ela própria está sujeita à mesma
palavra.
6. Por mais que a
presença ou existência do ministério pudesse ser incluída no capítulo da boa
ordem na igreja, como Lutero aparentemente fez, também, baseado em 1Co 14.40, é
verdade que o ministério é dom de Cristo à igreja (Ef 4). Um dom só pode ser
aceito ou rejeitado. Assim, o ministério não é ideia da igreja ou assunto a ser
avaliado – e reconfirmado ou rejeitado – de tempos em tempos. Ao chamar um
pastor, a igreja apenas preenche um ofício que o próprio Senhor instituiu. Paulo
diz aos bispos e presbíteros de Éfeso que eles foram constituídos bispos pelo
Espírito Santo (At 20.28). Isto não anula o fato de que essas pessoas foram
escolhidas pela igreja.
7. A pergunta sobre o que veio ou vem antes, a igreja ou o
ministério, é uma pergunta mal posta. O que veio e vem antes é a palavra de
Deus (Cristo), que dá origem a ambos.[5] Assim, à luz da teologia
luterana, especialmente a sequência entre o artigo IV e o artigo V da Confissão
de Augsburgo,[6]
o ministério está a serviço da palavra, e não a palavra a serviço do
ministério. Neste ponto há uma importante diferença entre a visão católico-romana
e a luterana. Para Roma, a palavra é instrumento do ministério. O bispo também
prega. Para Lutero, o ministério é instrumento da palavra. À luz desta
perspectiva se entende tanto a postura de Paulo em Filipenses 1.15-18,[7] onde aparece o primado da
pregação, quanto o que ensina o artigo VIII da Confissão de Augsburgo, em que
se confessa que a eficácia dos sacramentos não depende da piedade dos pastores.
8. A correlação entre ministério e igreja é tal que a
existência e atuação de um não anula a existência e atuação de outro. A
múltipla entrega do ofício das chaves aponta nessa direção. Como lembra Hermann
Sasse, no Novo Testamento a potestas clavium ou o ofício das chaves não
é entregue uma só vez, mas três vezes: em Mateus 16, a Pedro; em João 20, a
todos os apóstolos; e, em Mateus 18, a toda a igreja. Hermann Sasse diz bem: “Apenas
onde existe um ministério vivo, funcionando com a plena autoridade de sua
missão, se encontra também uma congregação viva. E só existe um ministério
vital onde existe uma congregação viva. (...) Se o ministério entra em crise ou
fracassa, ocorre o mesmo com a congregação, e vice-versa”.
9. Em função dessa coexistência de igreja e ministério, não
se sustenta qualquer tipo de Übertragungslehre
ou doutrina de transferência de privilégios e responsabilidades do “sacerdócio
de todos os cristãos” ao ministério pastoral. Edmund Schlink é enfático: “A
igreja não transfere seu ofício de pregação do evangelho e administração dos
sacramentos a pessoas do seu meio, mas preenche o ofício que lhe foi confiado
por Deus, chama para o ofício instituído por Deus” (Theology of the Lutheran Confessions, p. 245).
10. As Confissões
Luteranas têm pouco sobre o ofício do ministério. Têm menos ainda sobre os
assim chamados “leigos”,[8] e nada sobre o
relacionamento entre “leigos” e pastores.[9] Esta reticência das
Confissões condiz com o pouco que o Novo Testamento tem a dizer sobre o
assunto. O Novo Testamento apresenta vários quadros de como pastores eram
escolhidos, em situações que podem ser chamadas de “normais”. Mas, de modo
geral, é preciso dizer que o Novo Testamento tem pouco a dizer sobre como era
feita a eleição de pastores. Isto está na mesma linha da reticência quanto a
como organizar e “governar” a igreja.[10] Assim, muito do que nós
chamamos de “doutrina do chamado” é, não uma ordem divina, mas uma praxe
consagrada pelo tempo. As Escrituras não permitem estabelecer diferença
essencial entre chamado e ordenação, por exemplo.[11] Também não estabelecem
uma maneira fixa e única de se chamar um pastor. Não lançamos sortes, mas até
seria possível fazer um sorteio entre três candidatos, ao final do processo de
eleição de um pastor.[12] Entendemos que Deus chama
e, por isso, podemos continuar falando sobre “chamado divino”. Agora, Deus chama
através de quem? A congregação chama? Um conselho administrativo pode chamar?
Uma liga missionária pode chamar um pastor? Um sínodo chama pastores? A
resposta óbvia é esta: é sempre a igreja
que chama, mesmo que seja um conselho administrativo, uma liga missionária, ou
uma diretoria nacional de um sínodo. O corpo de Cristo sempre é íntegro, ou
seja, não pode ser fracionado. Hermann Sasse explica: “Deus chama homens para o
seu serviço, em geral por meio de pessoas. Pouco importa como isso se dá. Se é
ação de um indivíduo, ou um grupo oficial ou a igreja reunida em culto a Deus:
tudo é feito em nome da igreja, toda a igreja, que é o corpo de Cristo, e, com
isso, no poder do Espírito Santo”.
[1]
Esta visão deriva, em grande parte, da leitura de 1Coríntios.
[2]
Cabe explicar que exegetas que aceitam uma visão evolutiva, segundo a qual um
ministério formal ou oficial só teria surgido mais para o fim da época do Novo
Testamento, ou seja, na época em que, segundo eles, foram escritas as Cartas
Pastorais, tiram o peso dessa afirmação, entendendo que se tratam de funções e
não de ofícios.
[3] “Apóstolo”
é, por definição, um termo de serviço. Não é “status”. No contexto brasileiro,
como alguns afirmam, em tom crítico, a postura um tanto arrogante desses
“apóstolos” dá a entender que, no momento em que deixassem de ser “apóstolos”,
só poderiam ser “Deus”.
[4] Em
termos de língua alemã, é fácil passar de “Pfarrer” (pároco) a “Pfar-herr” (senhor da paróquia).
[5] Em
termos análogos, seria como responder à pergunta quanto ao que veio antes, se o
ovo ou a galinha, em termos de “o que veio antes é o Criador de ambos”.
[6] O
artigo V da Confissão de Augsburgo começa assim: “Para conseguirmos essa fé [de
que trata do artigo IV], instituiu Deus o ofício da pregação...”.
[7]
Paulo está feliz com o fato de Cristo ser anunciado, pouco importando o motivo.
[8] O
Novo Testamento desconhece o conceito de “leigos”. Em termos teológicos, só
existem leigos onde existem sacerdotes. Como a igreja cristã é, como um todo,
sacerdotal, os assim chamados “leigos” são, a rigor, todos sacerdotes. Em
função disso, a teologia luterana não contempla uma “teologia do laicato”. Tudo
que se tiver que dizer sobre “leigos” cabe dentro do conceito de igreja e
vice-versa.
[9]
Para quem não é especialista ou olha de fora, parece que Melanchthon, que não
era pastor, enfatizou a instituição divina do ministério mais do que Lutero.
[10]
Prova disso é que é possível extrair um modelo congregacional, um modelo
presbiteriano e um modelo episcopal, sem que o Novo Testamento defina a
questão.
[11] E
o mesmo poderia ser dito sobre ordenação e instalação.
[12] É
o que admite, por exemplo, um documento da Comissão de Teologia do Sínodo de
Missouri, intitulado Theology and
Practice of ‘the Divine Call’, 2003.
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