sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Breves reflexões sobre ministério no Novo Testamento


Prof. Dr. Vilson Scholz


1. Ao contrário daqueles que entendem que, no início, a igreja tinha apenas uma liderança “carismática”,[1] no sentido de que não havia um ofício pastoral institucionalizado, é possível afirmar que as igrejas cristãs nunca estiveram sem liderança pastoral. Além do relato de Atos, em que se vê Paulo promovendo a eleição de presbíteros, a abertura da carta aos Filipenses revela que já no período inicial as igrejas paulinas tinham uma liderança de “bispos e diáconos” (Fp 1.1).[2]

2. Paulo trata do ministério em praticamente todas as suas epístolas, com destaque para 2Coríntios. Se levarmos em conta o Novo Testamento como um todo, e não só as cartas paulinas, há uma série de textos em destaque, quando o assunto é ministério pastoral: 1Timóteo 3.1-7; 5.17; Tito 1.5-9; Atos 20.17-38; Efésios 4.7-16; Hebreus 13.7-17 e 1Pedro 5.1-4. A essa lista tradicional cabe acrescentar o capítulo dois de 1Tessalonicenses.

3. O verdadeiro pastor da Igreja é o próprio Cristo, que é o archipoimen ou supremo pastor (1Pe 5.4). Todos os outros são subpastores que atuam segundo o modelo de Cristo e em nome ou lugar dele. Pode-se, portanto, esperar que a face de Cristo seja vista no rosto do pastor. A ausência disso compromete a autenticidade do pastor. O aspecto do serviço (Mc 10.45) é característica fundamental. Não como dominadores do rebanho, diz Pedro.

4. O ministério pastoral é apostólico e, por isso, a reflexão em torno do tema precisa começar com os apóstolos. Estes são, de certo modo, “anteriores” à igreja, embora se possa dizer que são também o núcleo inicial da igreja. Ao chamá-los, Jesus estabeleceu o núcleo de sua igreja e “instituiu” o ministério, na medida em que, como representantes autorizados ou “procuradores”, os apóstolos dariam continuidade ao serviço de ensino que o próprio Cristo iniciou. Assim, se quisermos ser exatos, não podemos dizer que os apóstolos detêm um ofício eclesiástico, pois de uma forma toda especial eles estão ligados e “subordinados” a Cristo e, neste sentido, se inserem no evento revelador de Deus em Jesus Cristo, como testemunhas autênticas da pessoa e obra de Jesus. Os apóstolos são extensão de Cristo e não ministros da igreja, como se fossem uma instituição desta ou um ofício que a igreja inventou, embora sirvam à Igreja, sendo também eles próprios igreja.
Os apóstolos são o fundamento ou alicerce da igreja para todos os tempos e em todos os lugares. O ministério de hoje é apostólico apenas no sentido de que está conectado com o testemunho apostólico de Cristo no evangelho, na medida em que o ministério de hoje passa adiante, na proclamação e no ensino, a palavra de Deus que os apóstolos nos legaram. O Cristo anunciado hoje, pelo ministério eclesiástico, é o Senhor do qual os apóstolos dão testemunho. Neste sentido, todos os pastores da igreja são “apostólicos”, do mesmo modo que a igreja, como corpo de Cristo, é “apostólica”. À luz disto, fica claro quão inapropriado é alguém autodenominar-se “apóstolo” na igreja de hoje.[3]

5. O fato de os apóstolos serem também o núcleo da igreja – e, conforme o texto de Efésios, o seu alicerce, sendo Cristo a pedra angular – permite afirmar que é impossível separar igreja e ministério um do outro. O que é dito da igreja é dito do ministério, e vice-versa. O ministério não se encontra acima da igreja, mas invariavelmente dentro dela. Isto requer ênfase, pois é muito fácil passar de servo a senhor,[4] de pastor a dominador do rebanho. Neste sentido, certas formulações em traduções bíblicas são tudo menos inocentes. Um exemplo típico é o uso de “sobre o qual (rebanho)” na tradução de Almeida, em At 20.28, quando o texto original diz “no qual o Espírito Santo vos constituiu bispos”. Outro exemplo é 1Ts 5.12, na antiga Almeida (Almeida Revista e Corrigida): os que “presidem sobre vós”, um texto que foi neutralizado na Almeida Revista e Atualizada: “vos presidem”. Mais impactante do que tudo isso deveria ser o modelo de Paulo, que se apresenta, em 2Co 1.24, como “cooperador da vossa alegria”. Outro texto que trata disso é 1Ts 2.7.
Por outro lado, a congregação não tem domínio sobre o ministério do evangelho (Gl 1), como se pudesse a seu bel-prazer alterar a pregação. Igreja e ministério têm acima de si o único Senhor, no qual são um. A obediência de que fala Hb 13.17 é obediência em relação ao testemunho da palavra de Deus. Esta obediência inclui o exame do que é anunciado. Afinal, a igreja ou o grupo dos que ouvem não está sem a palavra do Novo Testamento, resumida e explanada nas Confissões Luteranas, que funciona como norma ou critério. A igreja tem o direito e a obrigação de julgar doutrina. Lutero fundamenta isso em Jo 10.27: as ovelhas podem e precisam dizer se a voz que ouvem é do bom pastor ou não. É claro que a igreja sabe que ela própria está sujeita à mesma palavra.
6.  Por mais que a presença ou existência do ministério pudesse ser incluída no capítulo da boa ordem na igreja, como Lutero aparentemente fez, também, baseado em 1Co 14.40, é verdade que o ministério é dom de Cristo à igreja (Ef 4). Um dom só pode ser aceito ou rejeitado. Assim, o ministério não é ideia da igreja ou assunto a ser avaliado – e reconfirmado ou rejeitado – de tempos em tempos. Ao chamar um pastor, a igreja apenas preenche um ofício que o próprio Senhor instituiu. Paulo diz aos bispos e presbíteros de Éfeso que eles foram constituídos bispos pelo Espírito Santo (At 20.28). Isto não anula o fato de que essas pessoas foram escolhidas pela igreja.

7. A pergunta sobre o que veio ou vem antes, a igreja ou o ministério, é uma pergunta mal posta. O que veio e vem antes é a palavra de Deus (Cristo), que dá origem a ambos.[5] Assim, à luz da teologia luterana, especialmente a sequência entre o artigo IV e o artigo V da Confissão de Augsburgo,[6] o ministério está a serviço da palavra, e não a palavra a serviço do ministério. Neste ponto há uma importante diferença entre a visão católico-romana e a luterana. Para Roma, a palavra é instrumento do ministério. O bispo também prega. Para Lutero, o ministério é instrumento da palavra. À luz desta perspectiva se entende tanto a postura de Paulo em Filipenses 1.15-18,[7] onde aparece o primado da pregação, quanto o que ensina o artigo VIII da Confissão de Augsburgo, em que se confessa que a eficácia dos sacramentos não depende da piedade dos pastores.

8. A correlação entre ministério e igreja é tal que a existência e atuação de um não anula a existência e atuação de outro. A múltipla entrega do ofício das chaves aponta nessa direção. Como lembra Hermann Sasse, no Novo Testamento a potestas clavium ou o ofício das chaves não é entregue uma só vez, mas três vezes: em Mateus 16, a Pedro; em João 20, a todos os apóstolos; e, em Mateus 18, a toda a igreja. Hermann Sasse diz bem: “Apenas onde existe um ministério vivo, funcionando com a plena autoridade de sua missão, se encontra também uma congregação viva. E só existe um ministério vital onde existe uma congregação viva. (...) Se o ministério entra em crise ou fracassa, ocorre o mesmo com a congregação, e vice-versa”.

9. Em função dessa coexistência de igreja e ministério, não se sustenta qualquer tipo de Übertragungslehre ou doutrina de transferência de privilégios e responsabilidades do “sacerdócio de todos os cristãos” ao ministério pastoral. Edmund Schlink é enfático: “A igreja não transfere seu ofício de pregação do evangelho e administração dos sacramentos a pessoas do seu meio, mas preenche o ofício que lhe foi confiado por Deus, chama para o ofício instituído por Deus” (Theology of the Lutheran Confessions, p. 245).

10. As Confissões Luteranas têm pouco sobre o ofício do ministério. Têm menos ainda sobre os assim chamados “leigos”,[8] e nada sobre o relacionamento entre “leigos” e pastores.[9] Esta reticência das Confissões condiz com o pouco que o Novo Testamento tem a dizer sobre o assunto. O Novo Testamento apresenta vários quadros de como pastores eram escolhidos, em situações que podem ser chamadas de “normais”. Mas, de modo geral, é preciso dizer que o Novo Testamento tem pouco a dizer sobre como era feita a eleição de pastores. Isto está na mesma linha da reticência quanto a como organizar e “governar” a igreja.[10] Assim, muito do que nós chamamos de “doutrina do chamado” é, não uma ordem divina, mas uma praxe consagrada pelo tempo. As Escrituras não permitem estabelecer diferença essencial entre chamado e ordenação, por exemplo.[11] Também não estabelecem uma maneira fixa e única de se chamar um pastor. Não lançamos sortes, mas até seria possível fazer um sorteio entre três candidatos, ao final do processo de eleição de um pastor.[12] Entendemos que Deus chama e, por isso, podemos continuar falando sobre “chamado divino”. Agora, Deus chama através de quem? A congregação chama? Um conselho administrativo pode chamar? Uma liga missionária pode chamar um pastor? Um sínodo chama pastores? A resposta óbvia é esta: é sempre a igreja que chama, mesmo que seja um conselho administrativo, uma liga missionária, ou uma diretoria nacional de um sínodo. O corpo de Cristo sempre é íntegro, ou seja, não pode ser fracionado. Hermann Sasse explica: “Deus chama homens para o seu serviço, em geral por meio de pessoas. Pouco importa como isso se dá. Se é ação de um indivíduo, ou um grupo oficial ou a igreja reunida em culto a Deus: tudo é feito em nome da igreja, toda a igreja, que é o corpo de Cristo, e, com isso, no poder do Espírito Santo”.



[1] Esta visão deriva, em grande parte, da leitura de 1Coríntios.
[2] Cabe explicar que exegetas que aceitam uma visão evolutiva, segundo a qual um ministério formal ou oficial só teria surgido mais para o fim da época do Novo Testamento, ou seja, na época em que, segundo eles, foram escritas as Cartas Pastorais, tiram o peso dessa afirmação, entendendo que se tratam de funções e não de ofícios.
[3] “Apóstolo” é, por definição, um termo de serviço. Não é “status”. No contexto brasileiro, como alguns afirmam, em tom crítico, a postura um tanto arrogante desses “apóstolos” dá a entender que, no momento em que deixassem de ser “apóstolos”, só poderiam ser “Deus”.
[4] Em termos de língua alemã, é fácil passar de “Pfarrer” (pároco) a “Pfar-herr” (senhor da paróquia).
[5] Em termos análogos, seria como responder à pergunta quanto ao que veio antes, se o ovo ou a galinha, em termos de “o que veio antes é o Criador de ambos”.
[6] O artigo V da Confissão de Augsburgo começa assim: “Para conseguirmos essa fé [de que trata do artigo IV], instituiu Deus o ofício da pregação...”.
[7] Paulo está feliz com o fato de Cristo ser anunciado, pouco importando o motivo.
[8] O Novo Testamento desconhece o conceito de “leigos”. Em termos teológicos, só existem leigos onde existem sacerdotes. Como a igreja cristã é, como um todo, sacerdotal, os assim chamados “leigos” são, a rigor, todos sacerdotes. Em função disso, a teologia luterana não contempla uma “teologia do laicato”. Tudo que se tiver que dizer sobre “leigos” cabe dentro do conceito de igreja e vice-versa.
[9] Para quem não é especialista ou olha de fora, parece que Melanchthon, que não era pastor, enfatizou a instituição divina do ministério mais do que Lutero.
[10] Prova disso é que é possível extrair um modelo congregacional, um modelo presbiteriano e um modelo episcopal, sem que o Novo Testamento defina a questão.
[11] E o mesmo poderia ser dito sobre ordenação e instalação.
[12] É o que admite, por exemplo, um documento da Comissão de Teologia do Sínodo de Missouri, intitulado Theology and Practice of ‘the Divine Call’, 2003.

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