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Sacerdote não é a mesma coisa que presbítero ou ministro, o sacerdote nasce
sacerdote, presbítero se torna presbítero
Aqui se precisa, antes de mais nada, uma fé firme, a fim de
afastarmos, com a força da Palavra de Deus, esse escândalo amplamente difundido
e em vigor há muito tempo, pelo qual, por engano humano, são chamados
sacerdotes os que receberam a tonsura e foram ungidos pelos bispos, o eu depois
se começou a defender com pertinácia desenfreada. Pois pelo artifício dessa
denominação, satanás entrou com furor incrível devastando a tudo. Tendo
assumido sete espíritos piores do que ele, tomou posse do palácio e ali habita
em paz[1],
de maneira que sob o termo sacerdote ninguém entende outra coisa senão essa
monstruosidade de raspar a cabeça e unção, introduzida por temeridade e
superstição humana. A não ser que passes de largo pelo uso pela antiguidade e a
maioria de olhos fechados, e te agarres de olhos abertos somente à Palavra de
Deus, não superarás esse escândalo.
Por isso, em primeiro lugar, permaneça firme para ti a rocha
írremovivel de que no Novo Testamento não existe nem pode existir o sacerdote
ungido externamente. Se existirem, são caricaturas e ídolos; não há exemplo nem
prescrição, nem qualquer abonação nos evangelhos ou nas epístolas dos apóstolos
que abonassem essa sua vaidade. Essas coisas foram estabelecidas e introduzidas
por mera invenção humana, da mesma maneira como o fez outrora Jeroboão em
Israel[2].
Pois, especial- mente, no Novo Testamento, não se faz um sacerdote, ele nasce,
não é ordenado, mas criado. No entanto, não nasce pelo nascimento da carne, mas
do Espírito, no banho da regeneração. Pois todos os cristãos são sacerdotes e
todos os sacerdotes são cristãos. Seja anátema quem afirma que o sacerdote é
algo diverso do que é o cristão Pois isso é uma afirmação sem Palavra de Deus,
exclusivamente, com base em palavras humanas, ou na opinião da maioria.
Estabelecer qualquer uma delas como artigo de fé é sacrílego e uma abominação,
como mostrei suficientemente em outro lugar.
As passagens da Escritura pelas quais se devem formar e
firmar nossas consciências contra os ungidos e raspados no sentido de que todos
os cristãos e somente eles são sacerdotes, são as seguintes: "Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” Sl 110[.4]. Pois
Cristo não foi raspado nem ungido com óleo para tornar-se [179] sacerdote. Por
essa razão, não basta para ninguém que segue a Cristo que seja ungido para
tornar-se sacerdote, mas é preciso ter algo bem diferente e, tendo isso, não se
precisa de óleo nem tonsura. Daí podes ver que erram sacrilegamente os bispos
ordenadores de mascarados, quando fazem suas unções e ordenações tão
imprescindíveis que sem elas ninguém pode tornar-se sacerdote, por mais santo
que sejam, que seja o próprio Cristo e que, por outro lado, através dessas
coisas alguém é feito sacerdote, embora fosse mais criminoso que Nero ou
Sardanaplo[3].
Que fazem com isso senão negar que Cristo é sacerdote
juntamente com seus cristãos? Pois, exercendo seu abominável ofício, a ninguém
tomam sacerdote a não ser que primeiro negue que é sacerdote. E assim, pelo
próprio ato de fazer alguém sacerdote, na verdade, destituem-no do sacerdócio,
de modo que, perante Deus, a
ordenação deles é uma encenação, embora também seja uma
degradação absolutamente verdadeira e séria. Pois que significa dizer: “Eu sou
ordenado sacerdote” senão confessar de fato: “Eu não fui, ainda não sou
sacerdote”? Isso é uma abominação tão grande como quando os monges fazem voto
de obediência aos “conselhos evangélicos”[4]
e, ao mesmo tempo, negam que são preceitos de Deus.
A conclusão: Cristo é sacerdote, logo os cristãos são
sacerdotes, é fiel e correta. Isso se evidencia do Sl 21[sc. 22.22]:
“Anunciarei teu nome a meus irmãos”, e também: “Deus, teu Deus, te ungiu com
óleo diante de teus companheiros” [Sl 45.7]. Somos seus irmãos somente através
do novo nascimento. Por essa razão também somos sacerdotes como ele, filhos
como ele, reis como ele, pois nos fez sentar com ele nos céus, para que sejamos
seus consortes e coerdeiros, no qual e com o qual nos são dadas todas as
coisas, Rm 8[.32][5].
Daí também segue de modo excelente: Cristo foi feito o
primeiro sacerdote do novo testamento, sem tonsura, sem unção, em suma, sem
aquele caráter e sem toda aquela máscara da ordenação episcopal. Ele também fez
sacerdotes a todos os seus apóstolos e discípulos, sem nenhuma dessas máscaras.
Por isso, essa ordenação mascarada não e necessária e, mesmo estando presente,
ela não é suficiente para te tornares sacerdote. Do contrário estás obrigado a
confessar que nem Cristo nem os apóstolos foram sacerdotes. Daí vês de todos os
modos o quanto estou certo ao afirmar que em nenhum lugar há menos sacerdotes
do que onde hoje se ordenam sacerdotes. Pois omitem todas as coisas por meio
das quais Cristo e os apóstolos se tomaram sacerdotes, e somente admitem
aquelas sem as quais Cristo e os apóstolos se tomaram sacerdotes, e que também
não fazem o sacerdote. Somente estabelecem de seu próprio cérebro a seguinte
mentira: “Por meio dessas coisas te tomas sacerdote, e de nenhum outro modo”, o
que equivale a dizer: Cristo não foi raspado e ungido por nós, logo não é sacerdote.
Prossigamos, porém, e mostremos também a partir dos ofícios
sacerdotais (como os chamam) que todos os cristãos são sacerdotes por igual.
Pois a palavra de 1Pedro 2[.9]: “Vós sois sacerdócio real” e a de Ap 5[.10]:
“Para Deus nos constituíste reino e sacerdotes" [180] já inculquei
suficientemente em outros livros[6].
Os ofícios sacerdotais são, digamos, os seguintes: ensinar, pregar e anunciar a
Palavra de Deus, batizar e consagrar ou ministrar a Eucaristia, ligar e
absolver, orar por outros, sacrificar e julgar todas as doutrinas e espíritos.
Certamente ofícios magníficos e régios. O primeiro e o mais sublime de todos,
do qual dependem todos os demais ofícios, é ensinar a Palavra de Deus. Pois com
a Palavra ensinamos, com a Palavra consagramos, com a Palavra ligamos e
absolvemos, com a Palavra batizamos, com a Palavra sacrificamos, por meio da
Palavra julgamos todas as coisas, de modo que, se oferecemos a Palavra a
alguém, evidentemente não lhe podemos negar nada que é pertinente ao sacerdote.
A Palavra é a mesma para todos, como diz Isaías [54.13]: “Farei com que todos
os teus filhos sejam ensinados pelo Senhor”. Os instruídos pelo Senhor são
aqueles que aprendem do Pai, como Cristo o interpreta em Jo 6[.45]. “O ouvir,
porém, acontece por meio da Palavra de Cristo”, Rm 10[.17], a fim de que se
realize o louvor do Sl 149[.9]: “essa glória é para todos os seus santos”.
Qual? “As exultações de Deus em suas gargantas, as espadas de dois gumes em
suas mãos, para executar a vingança entre as nações, increpar os povos, para
prender seus reis em cadeias, e seus nobres em grilhões de ferro, para
executarem neles a sentença escrita” [Sl 149.6ss.].
Que o ofício supremo, a saber, o ministério da Palavra, é
comum a todos os cristãos, além dos supramencionados, prova-o a palavra de 1Pedro
2[.9]: Vós sois sacerdócio real, a fim de anunciardes as virtudes daquele que
vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. Acaso somente as máscaras
raspadas e ungidas? Não são todos os cristãos? E Pedro não lhes concede somente
o direito, mas lhes dá a ordem de anunciarem as virtudes de Deus o que, seguramente,
nada mais é do que pregar a Palavra de Deus. Digam-me aqueles que imaginam um
sacerdócio duplo[7],
um espiritual e geral, outro especial e externo, afirmando que neste texto
Pedro fala do espiritual: Qual é a função de seu sacerdócio especial e externo?
Acaso não é anunciar as virtudes de Deus? Aqui, porém, Pedro ordena isso ao
sacerdócio espiritual e geral. Com efeito, esses sacrílegos têm outro
sacerdócio externo, pelo qual não anunciam as virtudes de Deus, mas as do papa
e suas impiedades. De resto, assim como não existe outra pregação no ministério
da Palavra senão aquela que é comum a todos, a saber, a das virtudes de Deus,
assim, também, não existe outro sacerdócio do que o espiritual e comum a todos
que Pedro definiu aqui.
A mesma coisa também Cristo prova através de Mateus, Marcos
e Lucas, onde disse a todos na última ceia: “Fazei isto em minha memória” [Lc
22.19; 1 Co 11.24]. Ele não disse isso somente aos raspados e ungidos, pois do
contrário apenas os raspados e ungidos poderiam receber o corpo e o sangue de
Cristo. Essa comemoração, porém, nada mais é do que pregar a Palavra, como
Paulo o expõe em 1 Co 11 [.26]. “Todas [181] as vezes que comerdes este pão e
beberdes o cálice, anunciareis a morte de Cristo, até que ele venha.” Pois
anunciar a morte de Cristo é anunciar as virtudes de Deus, que nos chamou das
trevas para a maravilhosa luz. Portanto, aqui de nada valem as fantasias de
homens ímpios, que afirmam que aqui os apóstolos são feitos sacerdotes, isso é,
ordenados com suas máscaras, quando, na verdade, aqui Cristo ordena a todos por
igual o mesmo ministério da Palavra. Comemorar a morte do Senhor é direito e
dever de todos, para que Deus seja louvado e glorificado em suas virtudes. Ele,
porém, não se refere à memória que os sacrificadores celebram em cantos
escondidos ou meditações, mas à que deve ser celebrada em público pelo
ministério da Palavra, a fim de salvar as almas dos ouvintes.
Isso o confirma Paulo em 1Co 14[.26], ao dizer, não aos raspados
ou a alguns poucos, mas a toda a Igreja e a cada cristão: “Cada um de vós tem
um hino, um ensinamento, uma revelação, uma língua, uma interpretação”. E mais
adiante: “Todos podeis profetizar um após o outro, para que todos aprendam e
todos sejam exortados” [1 Co 14.31]. Dize-me, que significa “cada um de vós”?
Que quer dizer “todos”? Acaso refere-se somente aos raspados com esse termo
geral? Portanto, essas citações provam suficientemente e do modo mais seguro e
claro que o ministério da Palavra é o ofício supremo da Igreja, em suma, o
único e comum a todos que são cristãos, não apenas de direito, mas também, por
mandamento. Por isso também o sacerdócio somente pode ser único e comum a
todos. Contra esses raios divinos nada podem nem os inúmeros pais da Igreja,
nem os inúmeros concílios, nem o eterno costume ou a maioria do mundo inteiro,
restolho no qual as máscaras raspadas se apoiam para firmar seu sacerdócio.
O segundo ofício, o de batizar, por fim, eles mesmos
compartilharam pelo uso inclusive com as mulheres, em caso de necessidade, de
maneira que quase não é mais considerado ofício sacerdotal. No entanto, quer
queiram, quer não, nós os obrigamos, por meio de sua própria compreensão, a
admitirem que todos os cristãos e somente os cristãos, inclusive as mulheres,
são sacerdotes sem tonsura ou a marca episcopal. Pois, ao batizarmos,
proferimos a vivificante Palavra de Deus, que regenera as almas e redime da
morte e dos pecados, o que é incomparavelmente mais do que consagrar pão e
vinho, pois é ofício máximo na Igreja, ou seja, anunciar a Palavra de Deus. Por
isso também as mulheres exercem o legítimo sacerdócio quando batizam. Não o
fazem por obra privada, mas pelo ministério eclesiástico público, que compete
somente ao sacerdote.
A surpreendente estupidez e demência dos papistas se revela
suficientemente neste único ponto: tomaram o ministério do Batismo comum a
todos, mas, não obstante, fizeram do sacerdócio uma exclusividade sua, visto
que o Batismo é direito exclusivo do sacerdote. Eles próprios estabeleceram que
o Batismo é justamente o primeiro sacramento, conquanto não permitem a ninguém
ministrar os sacramentos exceto aos sacerdotes. Ora, nenhum sacramento é mais
digno do que o outro, visto que todos se baseiam na mesma Palavra de Deus.
[182] Sua cegueira, porém, os induz ao erro, de modo que não enxergam a
majestade da Palavra de Deus que reina no Batismo. Se a considerassem conforme
sua dignidade, não haveria dignidade nem sacerdotal, nem episcopal, nem papal
que não atribuiriam àquele ao qual atribuem o ministério da Palavra. O título de
sacerdote, bispo ou papa se tomaria insignificante se comparado com o título de
ministro da Palavra viva de Deus, que permanece eternamente, que tudo pode e
tudo faz.
Assim também brincam ridiculamente ao conferirem ordenações
onde a autoridade episcopal sequer é sacramento[8]
nem possui um caráter especial em razão do qual unicamente a dignidade e o
poder episcopal fossem considerados como o supremo. Não obstante, a autoridade
episcopal há que ser suprema, visto que concede a ordenação e o caráter
[indelével] ao sacerdote; no entanto, é, ao mesmo tempo, inferior, visto que
não é ordenação nem tem um caráter [específico]. O inferior confere o superior.
Para completar esse absurdo, viram-se obrigados a inventar a distinção entre
dignidade e poder. Que mais poderia fazer a imprudente mentira, que jamais
permanece fiel a si mesma? Cristo mostrou que no reino do papa nada tem
fundamento seguro, mas que tudo é feito loucamente, fora do consenso comum. Por
isso não admira que tomem o sacramento sacerdotal do Batismo comum a todos e
que, não obstante, reservam o sacerdócio para si próprios.
O terceiro ofício é consagrar ou administrar o sagrado pão e
vinho. Aqui de fato triunfam e reinam as ordens dos raspados. Esse poder não
concedem nem aos anjos nem à virgem-mãe. No entanto, deixando de lado as
insanidades deles, afirmamos que também esse ofício pertence a todos, tão bem
como o sacerdócio. Afirmamos isso não baseados em nossa autoridade, mas na
autoridade de Cristo, que diz na última ceia: “Fazei isso em minha memória” [Lc
22.19; 1 Co 11.24]. Também aqui os papistas raspados afirmam que, por meio
dessa palavra, eles se tomaram sacerdotes e lhes foi concedido o poder de
consagrar. Acontece, porém, que Cristo disse essa palavra a todos os seus,
tanto aos que estiveram presentes naquela hora quanto aos que, no futuro,
fossem comer esse pão e beber esse cálice. Portanto, o que foi concedido foi
concedido a todos. E eles nada têm o que pudessem opor a isso, a não ser os
pais, concílios, o costume e aquele seu fortíssimo artigo de fé: “Somos a
maioria, e assim pensamos, portanto é verdade”.
A isso ainda se acrescenta o testemunho de Paulo em 1Co 11
[.23]: “Eu o recebi do Senhor, o que também vos transmiti, etc.”. Também aqui
Paulo fala a todos os Coríntios, e os faz a todos iguais a si mesmo, isso é,
consagradores [do pão e do vinho]. Mas também aqui os papistas têm uma trave
nos olhos[9],
de modo que não conseguem enxergar a majestade da Palavra de Deus e ficam
admirando somente a transubstanciação do pão. Eu te pergunto: Que é esse
magnífico poder de consagrar comparado com o poder concedido para batizar e
anunciar a Palavra? Uma mulher pode batizar e ministrar a palavra da vida, por
meio da qual o pecado é tirado, a morte eterna afastada, o príncipe do mundo
expulso, presenteado o céu, em resumo, por meio da qual toda [183] a divina
majestade se derrama na alma. Entrementes o milagreiro sacerdote transforma o
pão, no entanto, não por outra palavra ou poder maior. E essa transformação tem
por consequência, apenas, a estupefação e admiração do sacerdote em face de sua
grande dignidade e poder. Acaso não estão fazendo da mosca um elefante? Gente
digníssima essa que, enquanto desprezam a virtude da Palavra, admiram suas
próprias.
Do mesmo modo, vemos quão raras vezes os evangelistas e os
apóstolos mencionam a Eucaristia, de maneira que muitos desejariam que tivessem
falado mais a respeito. Por outro lado, em parte alguma deixam de insistir no
ministério da Palavra e o inculcam a ponto de saturar, como se o Espírito
tivesse previsto as futuras perversas abominações dos raspados, afastando o
coração da palavra da virtude e da verdade e voltando-o à morta transformação
do pão e do vinho, e agarrando-se por toda a vida a esses elementos externos,
enquanto desprezam a maravilhosa luz, na qual somos chamados. Portanto, se o
mais importante foi concedido a todos, a saber, a Palavra e o Batismo, não se
pode negar com justiça que o menos importante, a consagração [do pão e do
vinho], seja concedida igualmente, ainda que para isso não existisse abonação
da Escritura, como também Cristo conclui: “A alma vale mais que o corpo, e o
corpo vale mais que a comida” [Mt 6.25], Se, pois, Deus concede o mais
importante, quanto mais dará o menos importante.
O quarto ofício: ligar e absolver pecados. Desse ofício não
apenas se apropriaram e o arrogaram a si, mas dele derivaram arrogantemente a
conclusão de que o direito de fazer leis pertence exclusivamente a eles. Pois
“ligar” para eles é fazer leis, proibir e mandar, o que, de fato, é ligar as
consciências, mas com mentiras e ilusões, onde não há razão nenhuma para ligar,
como, por exemplo, quando proíbem núpcias e comidas criadas e instituídas por
Deus. Por sua vez, entre eles “absolver” significa tomar dinheiro para
dispensar de suas falazes ligaduras e leis, libertando, desse modo,
ilusoriamente as consciências ligadas de modo mentiroso. Também fazem uso do
ofício de ligar e absolver nas confissões e excomunhões, mas com nenhum direito
e com abuso condenável.
Com essa rapinagem e peculato sacrílego alcançaram que o
ofício de ligar e absolver, ou o ofício das chaves, está em parte alguma menos
do que entre esses que, em toda parte, se jactam das chaves, com as quais não
abrem nem fecham o céu para as consciências, mas as bolsas de todo mundo. Nós,
porém, que somos cristãos, temos o ofício das chaves em comum, o que provei e
demonstrei em tantos livretos contra o papa[10].
Pois cá está a Palavra de Cristo de Mt 18[.15], dirigida não somente aos apóstolos,
mas evidentemente a todos os irmãos: “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o,
e ganhaste o irmão”. E em seguida: “Se não der ouvidos à Igreja, seja para ti
como gentio e publicano. Em verdade vos digo, tudo que ligardes na terra, será ligado
no céu. Tudo que absolverdes na terra, será absolvido no céu” [Mt 18.17,18].
Aqui não precisamos demorar-nos com essas máscaras das
máscaras que, por temeridade própria e sem abonações das Escrituras, inventam
uma distinção entre direito das chaves e uso das chaves. Depois, conforme seu
costume [184] vicioso, consideram já provado o que deveriam provar. Pois quando
têm que provar que sua autoridade é algo diferente do que a autoridade comum da
Igreja, eles tomam isso por já demonstrado e, depois, acrescentam essa sua
fatídica distinção de que o direito das chaves pertenceria à Igreja, mas o uso
seria da alçada dos bispos. Pura frivolidade, que rui por si só. Aqui Cristo
confere tanto o direito quanto o uso a qualquer cristão, ao dizer: “Seja para ti
como gentio” [Mt 18.17]. Quem é este “seja para ti”? A quem se dirige Cristo
com esse pronome “ti”? Ao papa? Na verdade, dirige-se a todo e qualquer
cristão. E ao dizer “seja para ti”, não apenas concede o direito, mas ordena o
uso e a execução. Pois que significa dizer: “Seja para ti como gentio” senão
somente: Não tenhas relações com ele, nega-lhe a comunhão? Isso é de fato
excomungar, ligar e fechar o céu.
Isso é confirmado pelo que segue: “Tudo que ligares está
ligado” [Mt 18.18]. Quem são esses aos quais se dirige? Não são todos os
cristãos? Não é a Igreja? Pois se aqui não concedeu à Igreja o uso, mas somente
o direito das chaves, afirmamos, com o mesmo argumento, que o uso jamais foi
dado a alguém, também não a Pedro em Mt 16[.19|. Pois em toda parte as Palavras
de Cristo, pelas quais delega o ofício de ligar e absolver, são as mesmas. Se
em uma passagem ou referente a uma pessoa significam que foi concedido o
direito, significam em toda a parte que o direito foi concedido. Se num lugar
dizem que foi concedido o uso, significam em toda parte que foi concedido o
uso. Pois não se nos permite conferir às palavras de Deus, colocadas nos mesmos
termos em toda parte, numa passagem um sentido, noutra outro sentido, da
maneira como esses mascarados ousam brincar com os mistérios de Deus com suas
invenções.
Acabe-se, portanto, com as mentiras dos homens. As chaves
pertencem a toda a Igreja e a qualquer um de seus membros, tanto por direito
quanto pelo uso e de qualquer modo que seja, para não cometermos violência
contra as palavras de Cristo, pelas quais, de modo absoluto e generalizado, diz
a todos: “Seja para ti” e: “ganhaste teu irmão”; mais: “Tudo que, etc.”. Eu
poderia citar como confirmação também a palavra dita somente a Pedro: “Eu te
darei as chaves do reino dos céus” [Mt 16.19]. Igualmente esta outra: “Se dois
concordarem sobre a terra”. Idem: “Se dois estiverem reunidos em meu nome,
estou no meio deles” [Mt 18.19,20]. Em todas essas palavras se estabelece o
pleníssimo direito e o mais concreto uso de ligar e absolver, a não ser que
queiram negar ao próprio Cristo o direito e o uso das chaves, quando habita no
meio de dois. Disso, porém, tratei com exaustão em outra parte.
Como já dissemos acima, o ministério da Palavra pertence a
todos. Pois ligar e absolver, evidentemente, nada mais é do que pregar e
aplicar o Evangelho. Que significa absolver, senão anunciar a remissão dos
pecados perante Deus? Que significa ligar, senão retirar o Evangelho e anunciar
a retenção dos pecados? Por isso, queiram ou não, as chaves pertencem a todos,
visto que consistem no ministério de aplicar a Palavra de Deus.
[185] Contudo, que necessidade temos de reivindicarmos contenciosamente
esse ofício para nós, que conhecemos a Cristo? Pois está demonstrado com
suficiência que entre os papistas não há conhecimento de Cristo, e que a fé e o
Evangelho são totalmente ignorados e agora também condenados. Sendo, porém,
desconhecida a fé e Cristo ignorado, é impossível ver o que é pecado perante
Deus. Pois a cegueira da descrença os obriga a chamar de bom o que é mau, e a
chamar de mau o que é bom, e a errar totalmente o caminho. Pois, se ignoramos o
que é pecado e boa obra, é impossível poder ligar ou absolver. Portanto,
realmente queremos falar e pensar de acordo com Cristo: enquanto eles têm essa
compreensão, o ofício de ligar e absolver não está nem pode estar presente
entre os papistas e esses sacrificadores raspados, tampouco é possível que
sejam sacerdotes ou que somente eles possuam esse ofício, ou que o possam
transmitir a alguém por suas ordenações. Pois, que haverás de ligar se não
sabes que deve ser ligado? Por isso seu furor prossegue na medida de sua
cegueira. Fecham o céu e abrem o inferno para si mesmos e para os seus;
enquanto ligam, condenam o Evangelho e, ao absolverem, provam suas tradições.
Por causa desse seu abuso perverso e sacrílego, perderam as chaves tanto de
direito como quanto ao uso.
O quinto ofício é sacrificar. Esta é a coroa da glória dos
ébrios de Efraim[11].
Por meio desse ofício, eles se separaram de nós e deixaram o mundo inteiro
estupefato. Baseados nas estúpidas e mais imbecis mentiras, transformaram o
Sacramento [da Santa Ceia] em sacrifício, sobre o que já falamos acima. Por
isso, agora, seremos breves. Invocamos como testemunhas abonações do Novo Testamento,
às quais apelamos também contra satanás, e afirmamos que no Novo Testamento não
existe nenhum sacrifício, exceto aquele um, comum a todos, conforme Rm 12[.1],
onde Paulo nos ensina a oferecer nossos corpos por sacrifício, assim como
Cristo sacrificou o seu por nós na cruz. Nesse sacrifício, ele encerra o
sacrifício de louvor e ação de graças. Também Pedro ordena em 1Pe 2[.5] que
ofereçamos sacrifícios espirituais, aceitos por Deus por meio de Cristo, isso
é, a nós mesmos, e não ouro ou animais.
Por isso, o que eles jactam como sacrifício singular, na
verdade, é um sacrifício singular de seu singular sacerdócio, do qual, porém,
de forma alguma, qualquer cristão é, quer ou deve querer ser participante. Pelo
contrário, deverá detestá-lo como perversidade e idolatria da suprema blasfêmia
e desejar estar o mais distante possível de sua comunhão, por mais que aleguem
o antigo uso e sua universalidade. Pois não erra menos quem erra na companhia
de muitos, nem arde menos quem arde na companhia de muitos. Portanto, permanece
firme e seguro neste ponto: na Igreja existe somente este único sacrifício, a
saber, nosso corpo. Visto, pois, que hoje não pode existir nenhum sacrifício a
não ser aquele que é sacrificado e realizado pela Palavra de Deus e, sendo a
Palavra propriedade de todos (como já dissemos), também o sacrifício deve
pertencer a todos.
[186] Ora, visto que na Igreja só podem existir sacrifícios
espirituais, conforme diz Pedro, ou seja, os que são realizados em espírito e
verdade, é impossível que sejam oferecidos, a não ser por alguém que é
espiritual, isto é, pelo cristão que tem o Espírito de Cristo. Mas aos papistas
agrada somente sua invenção, com a qual escarnecem que seu sacrifício também
pode ser oferecido por criminosos, de forma nenhuma espirituais. Querem que seu
sacrifício seja agradável pela realização em si, sem considerar a pessoa que o
oferece[12].
Assim, esses abomináveis sacrílegos são convencidos por seu próprio testemunho,
porque ensinam que Deus se agrada da oferta de Caim, embora não se agradasse de
Caim. Pois o sacrifício deles (conforme eles mesmos se gloriam) é uma obra
externa, inclusive quando realizado por uma pessoa desagradável e condenada,
quando, na verdade, absolutamente nada agrada senão, antes de mais nada, a
pessoa, como foi aceitável a pessoa de Abel. Isso, porém, acontece pela fé e
pelo Espírito, não por meio de sacrifício. Portanto, visto que eles próprios
são obrigados a confessar que, em grande parte, seus sacrificadores não são
espirituais e que, não obstante, eles não podem ser sacrificadores se não forem
espirituais, é certo que seu sacrifício não é eclesiástico, mas uma mentira
humana.
O sexto ofício é orar pelos outros. De que modo repugnante e
impudico enganaram o mundo neste ponto, esses mascarados, fazendo da verdadeira
Igreja uma sinagoga fictícia. Isso é por demais infame de ouvir. Pois Cristo
legou sua oração dominical a todos os seus cristãos. Somente esse fato basta
para podermos provar e confirmar com suficiência que só existe um sacerdócio e
que ele pertence a todos e que, por outro lado, o sacerdócio papista é mera
mentira, inventado fora da Igreja e introduzido na Igreja por mera impudicícia.
Orar pelos outros significa servir de intermediador e interpelar a Deus, o que
compete somente a Cristo e a todos os seus irmãos (visto que também os papistas
querem ser chamados de sacerdotes em primeiro lugar pelo fato de orarem pelos
cristãos leigos, sim, isso é seu Dagom[13]
e o único Deus de seu ventre). Se essa oração é ordenada a todos, não resta
dúvida que foi ordenado a todos a exercer a função do sacerdócio.
Assim, talvez não saibas se foi mais por ignorância ou mais
por temeridade que esses mascarados não provaram a força e o ofício da oração
dominical, porque também eles próprios ensinaram que ela pertence a todos. Não
obstante, arrogaram exclusivamente para si o ofício da oração ou o ofício
sacerdotal, privando dele todos os demais. Pois que significa dizer: “Somente
nós somos sacerdotes, vós sois leigos”, senão: somente nós somos cristãos e
capazes de orar. Vós sois gentios, incapazes de orar, mas podeis receber ajuda
através de nossas orações? Por outra, que significa dizer: “Vós também deveis
orar, não somente nós”, senão: Vós também sois sacerdotes e irmãos de Cristo,
capazes de interceder perante Deus por todos?
Como, porém, é justa a vingança de Deus contra esses
abomináveis intercessores. Visto que querem ser os únicos capazes de orar pelo
povo, tornaram-se, por maravilhosa decisão de Deus, nada mais que pinturas de
pessoas que oram, de maneira que a iniquidade, que pensou [187] enganar a Deus
e aos homens, foi obrigada a enganar somente a si mesma. Pois quem realmente
ora em todo esse enorme universo de colégios, monastérios e prebendas? As
palavras de oração, na verdade, brotam de seus lábios e acham que sabem cantar
como Davi, como diz Amós [6.5], mas Isaías afirma que seu canto não passa de
algazarra, ao dizer: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está
longe de mim” [Is 29.13].
Assim podes encontrar entre eles muitos que, por quarenta
anos ou por toda a vida, recitaram as sagradas palavras das orações com os
lábios, mas sequer por um momento fizeram uma única oração perante Deus. E
esses monstros seriam dignos de serem considerados e chamados sacerdotes? Que
coloquemos à disposição deles tão grandes templos, tão elevadas somas e tão
altos tributos, e lhes submetamos os reinos do mundo inteiro? E, por fim,
também os verdadeiros sacerdotes e intercessores de Deus, ou seja, os cristãos,
pelos quais deveriam orar? Quando Deus sequer se digna a compará-los a gentios,
esses que esperam ser ouvidos por suas muitas palavras[14],
na verdade, nem cogitam ou esperam serem ouvidos e, também, não fazem todo esse
palavrório e verbosidade na esperança de serem ouvidos, mas apenas para louvar
a Deus com os lábios e para, com essa ostentação, merecerem o dinheiro do povo
e cevarem suas barrigas. Não obstante, por autoridade do papa, são sacerdotes
de Deus, aliás, de satanás, o deus do presente século, e oram por nós, isto é,
provocam a ira do Deus verdadeiro contra nós.
Ouçamos, porém, a Cristo, juiz e árbitro nesse caso. Ele
diz: “Deus é Espírito, e quem quer adorar, deve adorar em Espírito e verdade,
pois é essa espécie de adoradores que o Pai quer” [Jo 4.24,23], a saber, não os
que oram neste monte ou em Jerusalém. Estabelecida essa sentença definitiva da
Majestade, também nós estamos confiantes e, por autoridade divina, afirmamos
com plena confiança que o papa com seus seguidores possui um sacerdócio
singular e um singular ofício de orar, diverso do de todos os cristãos, não,
porém, um ofício pelo qual sejam sacerdotes e intercessores, mas máscaras e
figuras de sacerdotes e intercessores. De resto, somente os cristãos e todos os
que clamam no Espírito “Aba, Pai” [Rm 8.15], somente eles oram e somente eles
são sacerdotes.
O sétimo e último ofício é julgar e decidir sobre dogmas.
Evidentemente, não é sem razão que esses mascarados sacerdotais e cristãos
hipócritas usurparam para si esse ofício. Pois previram que, se permitissem que
esse ofício continuasse pertencendo a todos, não poderiam monopolizar nenhum
dos privilégios supramencionados. Pois, estando os ouvintes privados do poder
de julgar, que não poderá e ousará fazer um mestre, ainda que fosse pior que o
satanás (se isso fosse possível)? Por outro lado, sendo o julgamento permitido
ou até ordenado aos ouvintes, que poderá e ousará um mestre, ainda que seja
maior do que um anjo do céu? Se isso for permitido, Paulo não pode repreender
somente a Pedro, mas condenar inclusive os anjos do céu[15].
Por isso, com que temor e tremor teriam falado os bispos e concílios e
decretado sobre os ofícios de ensinar, batizar, sacrificar, ligar, orar [188] e
julgar, se tivessem que temer o juízo dos ouvintes. Sim, se tivesse prevalecido
esse juízo, jamais teria surgido o papado universal. Por isso, estiveram bem
aconselhados quando reivindicaram esse ofício para si.
No entanto, puderam fazer isso e prevaleceram “até que se
cumpriu a ira de Deus”, como diz Daniel [11.36]. Agora, porém, nos resplandeceu
o advento do Salvador e começou a destruir o iníquo, e o sopro de sua boca
matou o adversário que se exaltou acima de todo culto a Deus[16].
Agora prevalece a Palavra de Cristo em João 10[.27,5]: “Minhas ovelhas ouvem
minha voz, e não dão ouvidos à voz de outros”. E em Mt 7[.15]: “Acautelai-vos
dos falsos profetas”. Mt 16[.6]: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus, ou
seja, dos hipócritas”. Mt 23[.2s.]: “Na cátedra de Moisés estão sentados os
escribas e fariseus. Tudo que vos ordenam observar, observai e fazei-o; em suas
obras, porém, não os imiteis”. Por essas e muitas outras abonações, tanto do
Evangelho quanto de toda a Escritura, somos admoestados a não dar crédito a
falsos mestres. Que nos ensina isso senão que cada um de nós tenha cuidado de
sua salvação, tenha certeza do que deve crer e a que seguir, e seja juiz
inteiramente livre de tudo que lhe ensinam, sendo ensinado interiormente só por
Deus, conforme Jo 6[.45]? Pois não serás condenado ou salvo pela doutrina de
alguém outro, seja ela verdadeira ou falsa, mas somente por tua própria fé.
Portanto, cada qual ensine o que quiser, a ti, porém, compete observar se o que
crês te resulta em supremo perigo ou benefício.
Em 1Co 14[.30], porém, Paulo, como o mais forte de todos,
prendeu esse valente em sua própria casa e lhe roubou os armamentos, quando
diz: “Se o que estiver sentado tiver uma revelação, silencie o primeiro”. E
depois: “Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” [1Co 14.32]. E
mais: “Podeis profetizar todos um de cada vez” [1Co 14.31]. De que adianta aqui
o blá-blá-blá ébrio do papa e de seus asseclas, por mais séculos que estivesse
estado em uso: “Nós ordenamos, nós recomendamos seriamente, a Igreja de Roma é
mestra das igrejas e a regra de fé”? Pois que seja, que fique sentada e seja
mestra. Mas aqui se lhe ordena calar, se o que está sentado tiver revelação. E
não é só ela que pode profetizar, mas podemos profetizar todos, um após o
outro, diz Paulo, mestre e censor inclusive de Pedro em sua insinceridade[17].
Quanto mais devemos nós julgar com confiança a Igreja romana simuladora e
fingida, e não tolerar que sejamos julgados por ela, sob o perigo inclusive de
perdermos a própria salvação e de negarmos a Cristo.
Aqui, também, deve ser observada a bela sabedoria dessas
máscaras, o modo repugnante com que eles se voltam contra si mesmos, visto que
se opõem a Deus e a tudo que é de Deus. Acreditamos que eles creem, ao menos é
isso que os vemos propalar, que são os guias e pastores do povo cristão. Mas eu
também creio, e eles estão obrigados a confessá-lo, que cristão é aquele que
tem o Espírito Santo que (como diz Cristo) tudo ensinará[18].
E João diz: “Sua unção tudo vos ensinará” [1Jo 2.27], isto é, em breves
palavras, o cristão está tão certo do que deve crer e do que não deve, que
quererá ou está disposto a morrer por isso. Agora, por favor, que afronta essa
dos papistas que se jactam [189]: “Aos leigos compete obedecer a nós, não a si
mesmos”! Que é isso senão dizer: Confessamos que todo cristão tem o Espírito
Santo, pelo qual sabem, com toda certeza, o que deve ser crido e o que não.
Entretanto, visto que o Espírito Santo nos é submisso, somos bem mais instruídos
do que ele. Por isso ele nos deve ser submisso e obedecer.
Portanto, por essa razão, quiseram tomar mestres a si
mesmos, a fim de poderem ensinar o que quisessem, visto que não precisam temer
nenhum julgamento. Uma vez conseguido isso, foi fácil para eles usurpar tudo
que pertence a Deus e aos homens, tomando-se evidentemente deuses. A nós,
porém, foi dito: “Um só é vosso mestre, Cristo. Vós, porém, sois irmãos” [Mt
23.8,10]. Por isso estamos todos sujeitos à mesma lei. Também a fraternidade e
a comunhão não permitem que um seja superior ao outro, ou tenha maior herança
ou direito, ainda mais em questões espirituais, das quais estamos tratando. Por
isso não temos apenas o direito de reivindicar o ofício de julgar, bem como
todos os demais acima enumerados, mas, se não o recuperarmos, estaremos negando
a Cristo como irmão. Pois aqui não estamos tratando de assuntos opcionais ou
lícitos, mas do que é prescrito e necessário. Maldito aquele que reconhece a
tirania do papa, mas bendito quem a rejeita em apostasia cristã.
Tudo que dissemos refere-se ao direito comum dos cristãos.
Pois, visto que todas essas coisas pertencem a todos os cristãos (como
provamos), a ninguém é permitido interferir por autoridade própria ou arrebatar
para si o que é de todos. Faze uso desse direito e executa-o onde não há
ninguém que possui direito similar.
Mas essa comunhão de direitos exige que um, ou quantos a
comunidade queira, sejam escolhidos ou aceitos e que, em lugar e em nome de todos
que têm o mesmo direito, execute esses ofícios publicamente, para que não surja
uma confusão torpe entre o povo de Deus, e se instale uma Babilônia na Igreja,
mas todas as coisas sejam feitas em ordem, como ensinou o apóstolo[19].
Pois uma coisa é executar a lei pública, outra, fazer uso do direito em caso de
necessidade. A lei pública não pode ser executada sem o consenso de todos ou da
Igreja. Em caso de necessidade, pode fazer uso dela quem quiser.
Abordemos agora os sacerdotes papísticos e lhes peçamos que
nos mostrem se seu sacerdócio tem outros ofícios do que esses. Se tiver outros,
certamente não é cristão. Se tiver os mesmos, ele não é nada de especial.
Assim, concluímos que eles, não importando para que lado se voltem, ou não
possuem nenhum sacerdócio diferente que os leigos, ou possuem o sacerdócio de
satanás. Pois Cristo ensina a reconhecer toda árvore por seus frutos[20].
Acabamos de ver os frutos de nosso sacerdócio comum. Ou mostram frutos
diferentes desses, ou negam que são sacerdotes. Pois trazer frutos desse tipo
pública ou privativamente, não prova que se trata de um ou outro sacerdócio,
mas de um e outro uso diferente do mesmo sacerdócio. Porque, se nada mais têm a
mostrar do que sua tonsura, a unção e a longa túnica para provar seu sacerdócio,
permitimos-lhes que se gloriem dessas coisas sórdidas, pois sabemos que é fácil
raspar um porco ou um tronco, ungi-lo e vesti-lo com uma longa túnica.
Nós permanecemos firmes no seguinte: não existe outra
Palavra de Deus além daquela que é ordenada a ser pregada a todos os cristãos.
Não existe outro Batismo senão aquele que [190] qualquer cristão pode conceder.
Não existe outra memória da Ceia do Senhor além daquela que qualquer cristão
pode realizar, e que Cristo instituiu. Não existe outro pecado além daquele que
qualquer cristão deve ligar ou absolver. Não existe outro sacrifício além do
corpo de qualquer cristão. Ninguém pode orar a não ser o cristão. Ninguém pode
julgar doutrinas senão o cristão. Esses são os ofícios sacerdotais e régios.
Portanto, ou os papistas mostram outros ofícios dos sacerdotes, ou renunciam ao
sacerdócio. Tonsura, unção, vestimenta e outros ritos introduzidos pela
superstição humana não nos comovem, mesmo que nos sejam transmitidos por um
anjo do céu, muito menos se argumentarem com o uso antigo, com a opinião da
maioria ou a reconhecida autoridade.
Creio que de tudo isso se conclui que não podem nem devem
ser chamados de sacerdotes aqueles que administram os sacramentos e a Palavra
entre o povo. A razão por que são chamados sacerdotes procede ou do ritual dos
gentios, ou é adoção de reminiscências do povo judeu, o que resultou em máximo
prejuízo para a Igreja. De acordo com as escrituras evangélicas, seria melhor
chamá-los de ministros, diáconos, bispos, administradores, sendo com maior
frequência, também, chamados de presbíteros por causa de sua idade. Em 1Co 4[.1]
Paulo diz o seguinte: “Assim se nos considere como ministros de Cristo e
despenseiros dos mistérios de Deus”. Paulo não diz: “como sacerdotes de
Cristo”, porque bem sabia, que o nome e o ofício do sacerdote, era comum a
todos. Daí procede a célebre palavra de Paulo “administração” ou “economia”,
“ministério”, “ministro”, “servo”, “sirvo no Evangelho”, etc., para, de nenhum
modo, erigir um status, uma ordem, um direito ou dignidade (como querem os
nossos), recomendando apenas o ofício e o serviço, deixando o direito e a
dignidade do sacerdócio para a comunidade.
E se são apenas ministros, o caráter indelével já desaparece
e o caráter eterno do sacerdócio não passa de uma ficção. Um ministro pode ser
deposto, se deixar de ser fiel. Por outro lado, deve-se mantê-lo no ministério
enquanto o merecer e enquanto agradar à Igreja, como qualquer outro
administrador civil entre irmãos iguais. Sim, o ministro espiritual está mais
sujeito à remoção do que qualquer servidor civil, porque se toma mais
intolerável do que o civil quando se toma infiel, que só 20 pode causar
prejuízo em bens desta vida, enquanto aquele devasta os bens eternos. Por isso
compete aos demais irmãos excomungá-lo e substituí-lo por outro.
Com essas firmíssimas e confiabilíssimas abonações da
Escritura (se é que queremos dar crédito à Palavra de Deus) está superada essa
miserável necessidade que até hoje obriga a Boêmia quase a mendigar o
sacerdócio raspado e suportar, inclusive, os mais indignos dentre eles. Pois
aqui fica mais claro que a luz e mais certo que a fé de onde se devem pedir
sacerdotes ou ministros da Palavra, a saber, do rebanho de Cristo e de nenhum
outro lugar. Pois mostramos com clareza que toda pessoa tem o direito de
ministrar a Palavra, aliás, que isso é inclusive preceituado ao se constatar
que não existe ninguém para ensinar, ou que não ensinam corretamente os que
tendes agora, como Paulo o coloca em 1Co 14[.29ss.], a fim de que o poder de
Deus seja anunciado através de todos nós. Quanto mais uma comunidade toda não
terá o direito e a ordem de comissionar em lugar dela mesma, [191] por sufrágio
de todos, uma ou mais pessoas com esse ofício, e que essas, por sua vez, com a
aprovação da comunidade, também transmitam esse ofício a outros.
Assim diz Paulo em 2Timóteo 2[.2]: “Isso transmite a homens
fiéis e idôneos para ensinar também a outros”. Aqui Paulo rejeita toda essa
pompa de raspar [a cabeça], ungir e ordenar, e exige somente que sejam idôneos
para ensinar; e quer simplesmente que a esses se encomende a Palavra. Se o
ofício de ensinar a Palavra for transmitido a alguém, se lhe transmite
simultaneamente tudo que na Igreja acontece através da Palavra, a saber, o ofício
de batizar, consagrar, ligar, absolver, orar, julgar. Pois o ofício da pregação
do Evangelho é o ofício supremo, ou seja, o ofício apostólico, que fundamenta
todos os demais, sobre o qual todos devem alicerçar-se, como, por exemplo, os ofícios
dos mestres, profetas, administradores, das línguas, dom de curar e socorrer, conforme
Paulo os enumera em 1Co 12[.28]. Pois também Cristo antes de mais nada
evangelizou, incumbido que estava do ofício supremo, e não batizou. Também
Paulo se gloriou de não ter sido enviado para batizar, como ofício secundário,
mas para evangelizar, como primeiro ofício.
Mas, também, a necessidade nos obriga a isso e a compreensão
comum da fé o aconselha. Pois, visto que a Igreja nasce através da Palavra, é
alimentada, preservada e fortalecida por ela, é evidente que ela não pode
existir sem a Palavra. Se, porém, está sem a Palavra, deixa de ser Igreja.
Depois, visto que todos nasceram do Batismo para o ministério da Palavra e os
bispos papais não querem conceder ministros da Palavra, a não ser esses que
querem destruir a Palavra de Deus e aniquilar a Igreja, resta-nos ou permitir
que a Igreja de Deus pereça sem a Palavra, ou então, convocam uma reunião e, em
consenso geral, escolher, dentre a comunidade, um ou quantos forem necessários
e que sejam idôneos e, por meio de oração e imposição das mãos, recomendem e
confirmem-nos a toda a comunidade. Esses então sejam reconhecidos e honrados
como legítimos pastores e ministros da Palavra, crendo firmemente que isso foi
feito e realizado por Deus, pois é dessa maneira que acontece e se realiza o
consenso da comunidade dos fiéis, que reconhecem o Evangelho e o professam.
Se todos os argumentos citados não forem concludentes,
deveria ser suficiente admoestar e corroborar o que Cristo diz em Mateus
18[.19,20]: “Se dois consentirem na terra sobre qualquer coisa, tudo que
pedirem lhes será feito por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três
estiverem reunidos em meu nome, aí estou no meio deles”. Portanto, se o
consenso de três ou dois tudo pode em nome de Deus e, se Cristo se confessa
como o autor do que eles fazem, quanto mais não devemos crer que isso acontece
ou acontecerá com sua aprovação e por sua ação, quando estivermos reunidos em
seu nome e oramos e elegemos pastores e ministros da Palavra dentre nós mesmos
que, mesmo antes dessa eleição, já nascemos e fomos chamados a esse mesmo
ministério através do Batismo.
Se perguntarmos por algum exemplo, temos o de Apolo, a
respeito do qual lemos em At 18[.24ss.] que ele veio a Éfeso sem qualquer
vocação ou ordenação e pregou fervorosamente, e convenceu os judeus com poder.
Com que direito, pergunto eu, esse homem exerceu o ministério da Palavra? [192]
Unicamente pelo direito geral e comum, descrito em 1Co 14[.30]: “Se o que
estiver sentado tiver uma revelação, silencie o primeiro”; e em 1Pedro 2[.9]:
“para anunciardes suas virtudes”. E posteriormente, esse mesmo homem também se
tomou apóstolo, sem qualquer ordenação adicional, não apenas exercendo o
ministério da Palavra, mas sendo também muito útil aos que já criam. Do mesmo
modo, deve proceder qualquer cristão ao ver que a Palavra o necessita e se for
idôneo, mesmo que não seja chamado por toda a comunidade, quanto mais deverá
fazê-lo se lho pedirem e for chamado pelos irmãos, seus iguais, ou por toda a
congregação.
Outro exemplo são Estêvão e Filipe, ordenados apenas para
servirem à mesa[21].
Não obstante, Estêvão faz sinais e prodígios entre o povo, debate com as
sinagogas e refuta o concílio dos judeus pela palavra do Espírito. E Filipe
converteu os samaritanos e percorreu Azoto e Cesaréia[22].
Dize-me, com que direito e autoridade? Ninguém lho solicitou e ninguém o
chamou. Fizeram isso por iniciativa própria, baseados no direito geral, visto
que se lhes oferecia uma porta aberta e viram que o povo ignorante e privado da
Palavra necessitava de seu serviço. Quanto mais o teriam feito se tivessem sido
solicitados e chamados por alguns ou por toda a comunidade! E o eunuco convertido
por Filipe[23],
se realmente permaneceu cristão, como é de se crer, sem dúvida, ensinou a
Palavra de Deus a muitos, porque lhe fora ordenado anunciar as virtudes daquele
que o chamou das trevas para sua maravilhosa luz[24].
A Palavra anunciada por ele resultou na fé de muitos, visto que a Palavra de Deus
não retoma vazia[25].
De sua fé nasceu uma Igreja e, pela Palavra, esta Igreja recebeu e exerceu os
ofícios de batizar, de ensinar e todos os ofícios supramencionados. O eunuco
levou a cabo tudo isso exclusivamente pelo direito que lhe conferia o Batismo e
sua fé, especialmente, porque ali não existiam outros [encarregados desse
ministério].
Agora só falta, caríssimos senhores, que vos revistais de
uma fé firme, pela qual possais aconselhar vossa Boêmia; digo que aqui é
necessária uma fé corajosa. Pois estamos escrevendo essas coisas para as
pessoas que creem; os que não creem de qualquer forma não as entendem. Para
elas também não faz diferença ter ou não ter pastores, visto que não são
cristãos nem Igreja de Deus aqueles que não se deixam convencer por abonações
bíblicas e exemplos evidentes, mas se deixam convencer por essas máscaras
levianas, as tonsuras, unções e paramentos, que não têm abonações bíblicas, mas
são aprovados apenas pelo longo uso e pelo costume de muitos. Um cristão devoto
tem que tirar da cabeça essas coisas e prestar atenção única e exclusivamente à
Palavra de Deus e, em fé plena, crer que pode fazer e conseguir tudo que,
conforme seu conhecimento, é prometido por ela.
“Isso é uma inovação”, dizem eles. “Não há precedente de
eleger e criar pastores desse modo.” Respondo: Trata-se de um modo muito antigo
e comprovado pelo exemplo dos apóstolos e seus discípulos, mas abolido e
extinto pelos papistas, por exemplo contrário e doutrinas pestilentas. Por isso
deveis empenhar tanto mais esforço no sentido de expulsar esse recente exemplo
da pestilência e recuperar o antigo exemplo salutar. E depois [193], ainda que
fosse uma inovação recente, se a Palavra de Deus nos ilumina e ordena, e a
necessidade das almas compele a isso, a novidade do assunto não nos deve afetar
e, sim, a majestade da Palavra. Ora, que não é novidade dentre as coisas que a
fé faz? Acaso essa forma do ministério não foi novidade no tempo dos apóstolos?
Não foi algo novo quando Abraão ofereceu o filho? Não foi novidade que os
filhos de Israel atravessaram o mar? Acaso não será algo novo para mim que
passei da morte para a vida? Em todas essas coisas a atenção está voltada para a
Palavra de Deus, não para a novidade. Do contrário, se a novidade é motivo
suficiente para não nos importarmos com a questão, já não é possível crer
jamais em qualquer Palavra de Deus.
Portanto, meus irmãos, acreditai na Palavra de Deus e a
novidade não vos comoverá, justamente, conforme vosso próprio exemplo. Pois se
a novidade vale como argumento hoje, por que não valeu quando vós boêmios, como
únicos, resististes ao papa e fizestes tudo aquilo por causa de João Hus[26]?
Não foi isso algo novo e sem precedentes, sim, contrário ao exemplo de todo o
mundo até o dia de hoje? E isso numa época em que não estivestes tão firmes por
abonações tão manifestas da Escritura como estais no presente caso. Naquela
ocasião fostes corajosos somente para seguir, confessar e proteger o direito,
por mais que estivesse em desuso e extinto, quando não havia nenhuma
necessidade das almas, ou uma necessidade menor. Por que não iríeis agora
seguir, confessar e proteger vosso direito abolido, visto que estais armados de
tantos escudos e armamentos do arsenal de Davi[27]
e quando, além disso, existe uma necessidade tão urgente e um miserável
cativeiro das almas e, por outro lado, está a convidar tão grande liberdade,
tantos recursos e tão boa ocasião? Se essa novidade oferecer alguma
dificuldade, isso se resolverá com procedimento moderado; certamente será mais
fácil do que quando vos separastes da tirania papística, desde que o ouseis no
Senhor. E o Senhor estará convosco.
Procedei da seguinte forma: em primeiro lugar, rogai a Deus
com orações tanto privadas quanto públicas, pois está em jogo uma grande causa.
E nela não me comove tanto sua novidade quanto sua magnitude, quer dizer que
não quero que empreendais qualquer coisa por vossos próprias forças ou
sabedoria; atacai o problema com temor e tremor, em humildade, lamentando e
confessando perante o propiciatório de Deus e o trono de sua graça[28],
que é Jesus Cristo, Bispo de nossas almas[29],
que merecestes vossa miséria e vosso cativeiro mediante vossos pecados;
suplicai e orai que envie a vossos corações seu Espírito, que colabora
convosco, ou melhor, que opera em vós o querer e o realizar[30].
Pois, para que esse empreendimento seja iniciado auspiciosamente e continue de
modo salutar, é necessário que seja feito no poder divino que Deus concede
(como diz Pedro[31]).
Depois de haverdes orado desse modo, não duvideis que é fiel
aquele ao qual orastes para dar o que pedistes. Ele abrirá ao que bate e será
encontrado pelos que pedem[32],
para que, dessa maneira, estejais absolutamente certos de que não sois vós que
estais promovendo essa causa e, sim, que sois levados a promovê-la. Depois de
convocados e reunidos livremente aqueles cujos corações Deus tocou, de modo que
tenham o mesmo pensamento e sejam unânimes convosco, mãos à obra e elegei um ou
quantos quiserdes, que sejam considerados dignos. Depois, os líderes dentre vós
devem impor-lhes as mãos, confirmando e recomendando-os ao povo e [194] à Igreja,
ou a toda a comunidade. Sejam eles vossos bispos, ministros ou pastores. Amém.
Paulo ensina suficientemente em Tt 1[.6ss.] e 1Tm 3[.2ss.] que pessoas devem
ser escolhidas.
Não considero necessário que essa forma de eleição seja
adotada imediatamente na assembleia nacional de todas as comunidades da Boêmia.
Mas se algumas cidades adotarem sua norma individualmente, uma poderá seguir o
exemplo da outra. A assembleia nacional deve decidir se essa forma deve ser
adotada em toda a Boêmia, ou se uma parte pode adotá-la e outra, adiar a
decisão ou rejeitá-la totalmente. Pois ninguém deve ser coagido à fé, mas é
preciso dar lugar e honra ao Espírito Santo, para que sopre onde quiser. Também
não é de esperar que essas coisas irão agradar a todos, pelo menos não de
momento. Também não vos deve afetar o fato de não haver o consenso de todos, e
se muitos não concordam, isso vos deve encorajar tanto mais. Basta que de
início apenas poucos comecem com esse exemplo e que, depois de introduzido o
uso e no decurso do tempo, convidem a todo o povo a seguir o exemplo. Onde
acontecer que, com a ajuda de Deus, muitas cidades escolherem seus pastores
dessa maneira, esses pastores podem, se quiserem, reunir-se entre si e escolher
dentre eles um ou mais para serem seus superiores, isto é, que lhes sirvam e os
visitem, como Pedro visitou as igrejas em Atos dos Apóstolos [8.14ss.;
9.32ss.], até que a Boêmia retome ao legítimo e evangélico arcebispado, rico
não de muitos rendimentos e poderes, mas de muitos ministérios e visitas às
igrejas.
Se, porém, fordes fracos demais no conjunto para tentar esse
rito livre e apostólico de instituir sacerdotes, queremos tolerar vossa
fraqueza e permitir que aceiteis os já ordenados pelos bispos papistas, como,
por exemplo, vosso Galo63[33]
e outros semelhantes a ele, e useis a esses em lugar de bispos papais, para que
chamem, escolham e firmem os que considerarem idôneos e que estais dispostos a
tolerar, conforme o exposto acima e a doutrina de Paulo. Pois de acordo com
Paulo, certamente é bispo a pessoa que está encarregada [de pregar] a Palavra,
como é o caso de vosso Galo embora não ostente ínfula, nem cajado, nem outro
fausto ou pompa qualquer, coisas essas que só servem para impressionar o povo
estulto. Fazemos essa concessão até que cresçais e entendais plenamente o que é
o poder da Palavra de Deus. Evidentemente não podemos aconselhar-vos, por ora,
de outra forma. Pois não podeis aceitar as ordenações e os ordenados papistas
sem cometer pecado ou impiedade e, por conseguinte, sem o perigo de perder as
almas. Se aqui vos surgirem dúvidas se sois de fato Igreja de Deus, digo-vos
que não se reconhece a Igreja por costumes, mas pela Palavra, conforme 1Co
14[.24,25], onde [Paulo] diz que, se um descrente entrar na Igreja e os
encontrar profetizando, cairia de rosto em terra e confessaria que Deus de fato
habita no meio deles. Isso, porém, é certo que a Palavra de Deus e o
conhecimento de Cristo está ricamente presente entre vós. E onde quer que
esteja a Palavra de Deus associada ao conhecimento de Cristo, eles não são em
vão, por mais deficientes que sejam em costumes externos os que os possuem.
Pois a Igreja, embora fraca por causa de seus pecados, [195], não é ímpia na
Palavra. Certamente ela peca, mas não nega nem ignora a Palavra. Por isso não
se deve repudiar os que apreciam e confessam a Palavra, embora não resplandeçam
em esplêndida santidade, desde que não vivam obstinadamente em pecados
manifestos. Por isso não há razão nenhuma para duvidardes que a Igreja de Deus
está entre vós, ainda que sejam apenas dez ou seis que têm a Palavra. O que
esses fizerem nessa causa, inclusive com o consentimento dos outros que ainda
não têm a Palavra, certamente é como se Cristo o fizesse, desde que procedam
com humildade e orações, como já dissemos.
Por fim, o que temo que vá ser o maior obstáculo a esse plano
é que essa causa, como todas as demais que vêm de Deus, não ficará sem sua
cruz. Pois satanás não dorme nem ignora o que pretendemos com essa causa, e não
será preguiçoso em sua oposição. Ele é o príncipe do mundo e percebe nossos
pensamentos como nós percebemos os dele. Falo dessa cruz porque o poder do
mundo e o príncipe dos gentios, em seu poder, não vos permitirão executar esse
plano. Vão tentar impedi-lo mesmo antes que vós decidis como proceder. É assim
que, se agir no coração dos descrentes aquele que também é o deus do presente
século, não somente príncipe, de maneira que não há nenhuma esperança de que
essas coisas possam acontecer em paz e tranquilidade externa, mas no maior
tumulto e com tantas perturbações que vai parecer que o barquinho coberto de
ondas certamente submergirá.
Aqui nada tenho a dizer senão o que diz Pedro: “É preciso
obedecer mais a Deus do que aos homens” [At 5.29]. Pois, uma vez estabelecido
que essa causa é santa e agradável a Deus, como é de fato, é preciso firmar-se
sobre uma rocha e desprezar as ondas assustadoras, os ventos ameaçadores e as
chuvas torrenciais, nada mais esperando a não ser que paz e tranquilidade,
graça e honra sobrevenham àqueles que conhecem e fazem o que agrada a Deus.
Pois é por isso que Cristo envia esse fogo à terra e suscita o terrível beemote[34],
não porque fosse tão cruel, mas para nos ensinar que aquilo que empreendemos
não procede de nossa pouca força, mas do poder divino, a fim de não nos
gloriarmos ou nos tomarmos presunçosos contra a graça de Deus; antes,
desesperando de nós mesmos, calemos e deixemos que ele lute por nós (como a
Escritura insiste tantas vezes) e, apesar de nossa fraqueza, vença toda a força
e poder; e, enquanto silenciamos, ele dominará a revolta e as ondas do mar tão
grande, como está escrito: "Vossa força consistirá no silêncio e na
esperança” [Is 30.15], e: "Meti-o num duro combate, para que vencesse”
[Sab 10.12].
Sobretudo vos deve impelir a prosseguir quando vedes a
resistência que fazem os poderosos e os príncipes, baseados no firme argumento
de que vosso empreendimento procede de Deus e que o próprio Deus, cuja Palavra
tendes, está convosco. Pois, se esse plano fosse do mundo, o mundo não apenas
permitiria, mas também, amaria o que é seu[35].
Agora, porém, como ele não é do mundo, mas Deus o colocou em vossos corações
por meio de sua Palavra, por essa razão o mundo não somente não o permitirá,
[196] mas o odiará e perseguirá. "Mas sede confiantes, ele venceu o mundo”
[Jo 16.33]. "E aquele que está em nós é maior do que aquele que está no
mundo” [1Jo 4.4], ainda que possa parecer que essa causa está sendo subvertida
de tal maneira por tumultos e sedições que, também, os incrédulos temem que o
céu virá abaixo. Nossa rocha, porém, não estremece diante dos trovões e
relâmpagos[36]
e não teme o céu negro e nublado, nem se assusta "dos ventos tempestuosos
e do rugir das tempestades”[37],
mas está segura de si mesma e aguarda confiantemente a calmaria.
Por isso, "não temais, Judá e Jerusalém, mas permanecei
firmes. Vereis o auxílio de Deus sobre vós. Avançai, e o Senhor estará
convosco” [2Cr 20.17]. Pois não é novidade nem admira se o príncipe do mundo
esbraveja quando sente seu reino periclitar. Que outra coisa poderia fazer?
Preferiria ter sua casa em paz[38].
Visto, porém, que isso não é possível, recorre a suas armas extremas, ou seja,
ao furor e à violência. "Ruge como um leão, procurando a quem devorar”
[1Pe 5.8]. Depois de o termos conhecido como tal, por advertência de Deus, por
que iríamos esperar que ele fosse diferente e não iríamos resistir-lhe tanto
mais na fé? Por isso, permanecei firmes e prossegui, excelentes senhores.
Armai-vos com a Palavra de Deus, a invencível e onipotente espada do Espírito.
Ou encetais por esse caminho com uma fé forte, ou desisti totalmente. "Não
lutaremos com carne e sangue, mas com as perversidades espirituais nos
céus" [Ef 6.12]. Eu disse essas coisas (visto que era necessário) sobre a
maneira de instruir ministros eclesiásticos, em minha simplicidade, satisfeito
se motivei outras pessoas mais hábeis e instruídas do que eu apensarem e
falarem algo mais pertinente. Pois nem todos têm competência para tudo. As
funções estão repartidas e um só é o Senhor[39],
que não opera apenas numa só pessoa, mas em todas, não conforme nós queremos, mas
como ele quer.
Quanto ao mais, como reformar a missa e o culto a Deus,
restaurar outros ofícios do ministério eclesiástico, outros irão se manifestar,
ou eu próprio o farei noutra ocasião No entanto, se o ministro foi instituído
segundo o Evangelho, ele próprio pode dispor de modo mais adequado nesse
assunto, conforme lhe ensina a unção recebida Por agora basta se conseguirmos
junto a Deus, por orações e votos, esse ministério, e que sejamos dignos de
vê-lo alcançado e que nos alegremos com ele.
Fim.
[1]
Cf. Lc 11.21,26.
[2]
Cf. 1Rs 12.32s.
[3]
Nero, imperador de Roma (54-68), durante cujo governo aconteceu a primeira
perseguição aos cristãos em Roma. - Sardanaplo é o nome grego de Assurbanipal,
rei da Assíria (668-626 a.C.).
[4]
A doutrina católico romana distinguia entre mandamentos e conselhos
evangélicos. O cumprimento os mandamentos é dever de todos os cristãos, mas o
cumprimento dos conselhos evangélicos se exige somente dos “perfeitos”.
[5]
Cf. também Gl 3.28; 1 Co 10.17; Ef 4.4; 5.30.
[6]
Cf., p. ex., "À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do
Estamento Cristão", in: OSel 2,282s.; "Do Cativeiro Babilônico da
Igreja”, in: OSel 2,414s.; cf. também WA 8,247ss.
[7]
Cf. WA 8,248,14ss.
[8]
A Igreja romana conhece somente um sacramento da ordenação, o sacramento da
ordenação sacerdotal; a ordenação a bispo não é sacramento, e denomina-se, por
isso, consagração.
[9]
Cf. Mt 7.3.
[10]
Cf., p. ex. “Comentário de Lutero sobre a 13ª Tese a respeito do Poder do Papa
(Enriquecido pelo Autor)", in. OSel 1,275ss.; v. também WA 2,248s.; “Um
Sermão sobre o Sacramento da Penitência”, in: OSel 1,401ss., especialmente p.
406, item 9; v. também WA 6,391ss.
[11]
Cf. Is 28.1.
[12]
No original: opere operati non operantis.
[13]
Cf. 1Sm 5.2ss.
[14]
Cf. Mt 6.7.
[15]
Cf. Gl 1.8.
[16]
Cf. 2Ts 2.8,4.
[17]
Cf. Gl 2.14ss.
[18]
Cf. Jo 14.26.
[19]
Cf. 1Co 14.40.
[20]
Cf. Mt 7.16ss.
[21]
Cf. At 6.5-6.
[22]
Cf. At 8.5ss.,40.
[23]
Cf. At 8.36.
[24]
Cf. 1Pe 2.9.
[25]
Cf. Is 55.11.
[26]
Cf. acima, p. 90, n. 26.
[27]
Cf. Ct 4.4.
[28]
Cf. Hb 4.16.
[29]
Cf. 1Pe 2.25.
[30]
Cf. Fp 2.13.
[31]
Cf. 1Pe 4.11.
[32]
Cf. Mt 7.8.
[33]
Galo Cahera, v. acima, p. 82, n. 11.
[34]
Cf. Jó 40.15.
[35]
Cf. Jo 15.19.
[36]
Cf. Juvenal 13,223. Cf. referência em WA 12,196, n. 1.
[37]
Virgílio, Eneida 1,53. Cf. referência em WA 12,196, n. 2.
[38]
Cf. Lc 11.21.
Obras Selecionadas de
Lutero, v. 7, pp 25 a 36
Este livro completo e todos os outros da coleção, podem ser comprados na Editora Concórdia (https://www.editoraconcordia.com.br)
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