terça-feira, 10 de setembro de 2019

Ministério - Sacerdote não é a mesma coisa que presbítero ou ministro

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Sacerdote não é a mesma coisa que presbítero ou ministro, o sacerdote nasce sacerdote, presbítero se torna presbítero

Aqui se precisa, antes de mais nada, uma fé firme, a fim de afastarmos, com a força da Palavra de Deus, esse escândalo amplamente difundido e em vigor há muito tempo, pelo qual, por engano humano, são chamados sacerdotes os que receberam a tonsura e foram ungidos pelos bispos, o eu depois se começou a defender com pertinácia desenfreada. Pois pelo artifício dessa denominação, satanás entrou com furor incrível devastando a tudo. Tendo assumido sete espíritos piores do que ele, tomou posse do palácio e ali habita em paz[1], de maneira que sob o termo sacerdote ninguém entende outra coisa senão essa monstruosidade de raspar a cabeça e unção, introduzida por temeridade e superstição humana. A não ser que passes de largo pelo uso pela antiguidade e a maioria de olhos fechados, e te agarres de olhos abertos somente à Palavra de Deus, não superarás esse escândalo.
Por isso, em primeiro lugar, permaneça firme para ti a rocha írremovivel de que no Novo Testamento não existe nem pode existir o sacerdote ungido externamente. Se existirem, são caricaturas e ídolos; não há exemplo nem prescrição, nem qualquer abonação nos evangelhos ou nas epístolas dos apóstolos que abonassem essa sua vaidade. Essas coisas foram estabelecidas e introduzidas por mera invenção humana, da mesma maneira como o fez outrora Jeroboão em Israel[2]. Pois, especial- mente, no Novo Testamento, não se faz um sacerdote, ele nasce, não é ordenado, mas criado. No entanto, não nasce pelo nascimento da carne, mas do Espírito, no banho da regeneração. Pois todos os cristãos são sacerdotes e todos os sacerdotes são cristãos. Seja anátema quem afirma que o sacerdote é algo diverso do que é o cristão Pois isso é uma afirmação sem Palavra de Deus, exclusivamente, com base em palavras humanas, ou na opinião da maioria. Estabelecer qualquer uma delas como artigo de fé é sacrílego e uma abominação, como mostrei suficientemente em outro lugar.
As passagens da Escritura pelas quais se devem formar e firmar nossas consciências contra os ungidos e raspados no sentido de que todos os cristãos e somente eles são sacerdotes, são as seguintes: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” Sl 110[.4]. Pois Cristo não foi raspado nem ungido com óleo para tornar-se [179] sacerdote. Por essa razão, não basta para ninguém que segue a Cristo que seja ungido para tornar-se sacerdote, mas é preciso ter algo bem diferente e, tendo isso, não se precisa de óleo nem tonsura. Daí podes ver que erram sacrilegamente os bispos ordenadores de mascarados, quando fazem suas unções e ordenações tão imprescindíveis que sem elas ninguém pode tornar-se sacerdote, por mais santo que sejam, que seja o próprio Cristo e que, por outro lado, através dessas coisas alguém é feito sacerdote, embora fosse mais criminoso que Nero ou Sardanaplo[3].
Que fazem com isso senão negar que Cristo é sacerdote juntamente com seus cristãos? Pois, exercendo seu abominável ofício, a ninguém tomam sacerdote a não ser que primeiro negue que é sacerdote. E assim, pelo próprio ato de fazer alguém sacerdote, na verdade, destituem-no do sacerdócio, de modo que, perante Deus, a
ordenação deles é uma encenação, embora também seja uma degradação absolutamente verdadeira e séria. Pois que significa dizer: “Eu sou ordenado sacerdote” senão confessar de fato: “Eu não fui, ainda não sou sacerdote”? Isso é uma abominação tão grande como quando os monges fazem voto de obediência aos “conselhos evangélicos”[4] e, ao mesmo tempo, negam que são preceitos de Deus.
A conclusão: Cristo é sacerdote, logo os cristãos são sacerdotes, é fiel e correta. Isso se evidencia do Sl 21[sc. 22.22]: “Anunciarei teu nome a meus irmãos”, e também: “Deus, teu Deus, te ungiu com óleo diante de teus companheiros” [Sl 45.7]. Somos seus irmãos somente através do novo nascimento. Por essa razão também somos sacerdotes como ele, filhos como ele, reis como ele, pois nos fez sentar com ele nos céus, para que sejamos seus consortes e coerdeiros, no qual e com o qual nos são dadas todas as coisas, Rm 8[.32][5].
Daí também segue de modo excelente: Cristo foi feito o primeiro sacerdote do novo testamento, sem tonsura, sem unção, em suma, sem aquele caráter e sem toda aquela máscara da ordenação episcopal. Ele também fez sacerdotes a todos os seus apóstolos e discípulos, sem nenhuma dessas máscaras. Por isso, essa ordenação mascarada não e necessária e, mesmo estando presente, ela não é suficiente para te tornares sacerdote. Do contrário estás obrigado a confessar que nem Cristo nem os apóstolos foram sacerdotes. Daí vês de todos os modos o quanto estou certo ao afirmar que em nenhum lugar há menos sacerdotes do que onde hoje se ordenam sacerdotes. Pois omitem todas as coisas por meio das quais Cristo e os apóstolos se tomaram sacerdotes, e somente admitem aquelas sem as quais Cristo e os apóstolos se tomaram sacerdotes, e que também não fazem o sacerdote. Somente estabelecem de seu próprio cérebro a seguinte mentira: “Por meio dessas coisas te tomas sacerdote, e de nenhum outro modo”, o que equivale a dizer: Cristo não foi raspado e ungido por nós, logo não é sacerdote.
Prossigamos, porém, e mostremos também a partir dos ofícios sacerdotais (como os chamam) que todos os cristãos são sacerdotes por igual. Pois a palavra de 1Pedro 2[.9]: “Vós sois sacerdócio real” e a de Ap 5[.10]: “Para Deus nos constituíste reino e sacerdotes" [180] já inculquei suficientemente em outros livros[6]. Os ofícios sacerdotais são, digamos, os seguintes: ensinar, pregar e anunciar a Palavra de Deus, batizar e consagrar ou ministrar a Eucaristia, ligar e absolver, orar por outros, sacrificar e julgar todas as doutrinas e espíritos. Certamente ofícios magníficos e régios. O primeiro e o mais sublime de todos, do qual dependem todos os demais ofícios, é ensinar a Palavra de Deus. Pois com a Palavra ensinamos, com a Palavra consagramos, com a Palavra ligamos e absolvemos, com a Palavra batizamos, com a Palavra sacrificamos, por meio da Palavra julgamos todas as coisas, de modo que, se oferecemos a Palavra a alguém, evidentemente não lhe podemos negar nada que é pertinente ao sacerdote. A Palavra é a mesma para todos, como diz Isaías [54.13]: “Farei com que todos os teus filhos sejam ensinados pelo Senhor”. Os instruídos pelo Senhor são aqueles que aprendem do Pai, como Cristo o interpreta em Jo 6[.45]. “O ouvir, porém, acontece por meio da Palavra de Cristo”, Rm 10[.17], a fim de que se realize o louvor do Sl 149[.9]: “essa glória é para todos os seus santos”. Qual? “As exultações de Deus em suas gargantas, as espadas de dois gumes em suas mãos, para executar a vingança entre as nações, increpar os povos, para prender seus reis em cadeias, e seus nobres em grilhões de ferro, para executarem neles a sentença escrita” [Sl 149.6ss.].
Que o ofício supremo, a saber, o ministério da Palavra, é comum a todos os cristãos, além dos supramencionados, prova-o a palavra de 1Pedro 2[.9]: Vós sois sacerdócio real, a fim de anunciardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. Acaso somente as máscaras raspadas e ungidas? Não são todos os cristãos? E Pedro não lhes concede somente o direito, mas lhes dá a ordem de anunciarem as virtudes de Deus o que, seguramente, nada mais é do que pregar a Palavra de Deus. Digam-me aqueles que imaginam um sacerdócio duplo[7], um espiritual e geral, outro especial e externo, afirmando que neste texto Pedro fala do espiritual: Qual é a função de seu sacerdócio especial e externo? Acaso não é anunciar as virtudes de Deus? Aqui, porém, Pedro ordena isso ao sacerdócio espiritual e geral. Com efeito, esses sacrílegos têm outro sacerdócio externo, pelo qual não anunciam as virtudes de Deus, mas as do papa e suas impiedades. De resto, assim como não existe outra pregação no ministério da Palavra senão aquela que é comum a todos, a saber, a das virtudes de Deus, assim, também, não existe outro sacerdócio do que o espiritual e comum a todos que Pedro definiu aqui.
A mesma coisa também Cristo prova através de Mateus, Marcos e Lucas, onde disse a todos na última ceia: “Fazei isto em minha memória” [Lc 22.19; 1 Co 11.24]. Ele não disse isso somente aos raspados e ungidos, pois do contrário apenas os raspados e ungidos poderiam receber o corpo e o sangue de Cristo. Essa comemoração, porém, nada mais é do que pregar a Palavra, como Paulo o expõe em 1 Co 11 [.26]. “Todas [181] as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciareis a morte de Cristo, até que ele venha.” Pois anunciar a morte de Cristo é anunciar as virtudes de Deus, que nos chamou das trevas para a maravilhosa luz. Portanto, aqui de nada valem as fantasias de homens ímpios, que afirmam que aqui os apóstolos são feitos sacerdotes, isso é, ordenados com suas máscaras, quando, na verdade, aqui Cristo ordena a todos por igual o mesmo ministério da Palavra. Comemorar a morte do Senhor é direito e dever de todos, para que Deus seja louvado e glorificado em suas virtudes. Ele, porém, não se refere à memória que os sacrificadores celebram em cantos escondidos ou meditações, mas à que deve ser celebrada em público pelo ministério da Palavra, a fim de salvar as almas dos ouvintes.
Isso o confirma Paulo em 1Co 14[.26], ao dizer, não aos raspados ou a alguns poucos, mas a toda a Igreja e a cada cristão: “Cada um de vós tem um hino, um ensinamento, uma revelação, uma língua, uma interpretação”. E mais adiante: “Todos podeis profetizar um após o outro, para que todos aprendam e todos sejam exortados” [1 Co 14.31]. Dize-me, que significa “cada um de vós”? Que quer dizer “todos”? Acaso refere-se somente aos raspados com esse termo geral? Portanto, essas citações provam suficientemente e do modo mais seguro e claro que o ministério da Palavra é o ofício supremo da Igreja, em suma, o único e comum a todos que são cristãos, não apenas de direito, mas também, por mandamento. Por isso também o sacerdócio somente pode ser único e comum a todos. Contra esses raios divinos nada podem nem os inúmeros pais da Igreja, nem os inúmeros concílios, nem o eterno costume ou a maioria do mundo inteiro, restolho no qual as máscaras raspadas se apoiam para firmar seu sacerdócio.
O segundo ofício, o de batizar, por fim, eles mesmos compartilharam pelo uso inclusive com as mulheres, em caso de necessidade, de maneira que quase não é mais considerado ofício sacerdotal. No entanto, quer queiram, quer não, nós os obrigamos, por meio de sua própria compreensão, a admitirem que todos os cristãos e somente os cristãos, inclusive as mulheres, são sacerdotes sem tonsura ou a marca episcopal. Pois, ao batizarmos, proferimos a vivificante Palavra de Deus, que regenera as almas e redime da morte e dos pecados, o que é incomparavelmente mais do que consagrar pão e vinho, pois é ofício máximo na Igreja, ou seja, anunciar a Palavra de Deus. Por isso também as mulheres exercem o legítimo sacerdócio quando batizam. Não o fazem por obra privada, mas pelo ministério eclesiástico público, que compete somente ao sacerdote.
A surpreendente estupidez e demência dos papistas se revela suficientemente neste único ponto: tomaram o ministério do Batismo comum a todos, mas, não obstante, fizeram do sacerdócio uma exclusividade sua, visto que o Batismo é direito exclusivo do sacerdote. Eles próprios estabeleceram que o Batismo é justamente o primeiro sacramento, conquanto não permitem a ninguém ministrar os sacramentos exceto aos sacerdotes. Ora, nenhum sacramento é mais digno do que o outro, visto que todos se baseiam na mesma Palavra de Deus. [182] Sua cegueira, porém, os induz ao erro, de modo que não enxergam a majestade da Palavra de Deus que reina no Batismo. Se a considerassem conforme sua dignidade, não haveria dignidade nem sacerdotal, nem episcopal, nem papal que não atribuiriam àquele ao qual atribuem o ministério da Palavra. O título de sacerdote, bispo ou papa se tomaria insignificante se comparado com o título de ministro da Palavra viva de Deus, que permanece eternamente, que tudo pode e tudo faz.
Assim também brincam ridiculamente ao conferirem ordenações onde a autoridade episcopal sequer é sacramento[8] nem possui um caráter especial em razão do qual unicamente a dignidade e o poder episcopal fossem considerados como o supremo. Não obstante, a autoridade episcopal há que ser suprema, visto que concede a ordenação e o caráter [indelével] ao sacerdote; no entanto, é, ao mesmo tempo, inferior, visto que não é ordenação nem tem um caráter [específico]. O inferior confere o superior. Para completar esse absurdo, viram-se obrigados a inventar a distinção entre dignidade e poder. Que mais poderia fazer a imprudente mentira, que jamais permanece fiel a si mesma? Cristo mostrou que no reino do papa nada tem fundamento seguro, mas que tudo é feito loucamente, fora do consenso comum. Por isso não admira que tomem o sacramento sacerdotal do Batismo comum a todos e que, não obstante, reservam o sacerdócio para si próprios.
O terceiro ofício é consagrar ou administrar o sagrado pão e vinho. Aqui de fato triunfam e reinam as ordens dos raspados. Esse poder não concedem nem aos anjos nem à virgem-mãe. No entanto, deixando de lado as insanidades deles, afirmamos que também esse ofício pertence a todos, tão bem como o sacerdócio. Afirmamos isso não baseados em nossa autoridade, mas na autoridade de Cristo, que diz na última ceia: “Fazei isso em minha memória” [Lc 22.19; 1 Co 11.24]. Também aqui os papistas raspados afirmam que, por meio dessa palavra, eles se tomaram sacerdotes e lhes foi concedido o poder de consagrar. Acontece, porém, que Cristo disse essa palavra a todos os seus, tanto aos que estiveram presentes naquela hora quanto aos que, no futuro, fossem comer esse pão e beber esse cálice. Portanto, o que foi concedido foi concedido a todos. E eles nada têm o que pudessem opor a isso, a não ser os pais, concílios, o costume e aquele seu fortíssimo artigo de fé: “Somos a maioria, e assim pensamos, portanto é verdade”.
A isso ainda se acrescenta o testemunho de Paulo em 1Co 11 [.23]: “Eu o recebi do Senhor, o que também vos transmiti, etc.”. Também aqui Paulo fala a todos os Coríntios, e os faz a todos iguais a si mesmo, isso é, consagradores [do pão e do vinho]. Mas também aqui os papistas têm uma trave nos olhos[9], de modo que não conseguem enxergar a majestade da Palavra de Deus e ficam admirando somente a transubstanciação do pão. Eu te pergunto: Que é esse magnífico poder de consagrar comparado com o poder concedido para batizar e anunciar a Palavra? Uma mulher pode batizar e ministrar a palavra da vida, por meio da qual o pecado é tirado, a morte eterna afastada, o príncipe do mundo expulso, presenteado o céu, em resumo, por meio da qual toda [183] a divina majestade se derrama na alma. Entrementes o milagreiro sacerdote transforma o pão, no entanto, não por outra palavra ou poder maior. E essa transformação tem por consequência, apenas, a estupefação e admiração do sacerdote em face de sua grande dignidade e poder. Acaso não estão fazendo da mosca um elefante? Gente digníssima essa que, enquanto desprezam a virtude da Palavra, admiram suas próprias.
Do mesmo modo, vemos quão raras vezes os evangelistas e os apóstolos mencionam a Eucaristia, de maneira que muitos desejariam que tivessem falado mais a respeito. Por outro lado, em parte alguma deixam de insistir no ministério da Palavra e o inculcam a ponto de saturar, como se o Espírito tivesse previsto as futuras perversas abominações dos raspados, afastando o coração da palavra da virtude e da verdade e voltando-o à morta transformação do pão e do vinho, e agarrando-se por toda a vida a esses elementos externos, enquanto desprezam a maravilhosa luz, na qual somos chamados. Portanto, se o mais importante foi concedido a todos, a saber, a Palavra e o Batismo, não se pode negar com justiça que o menos importante, a consagração [do pão e do vinho], seja concedida igualmente, ainda que para isso não existisse abonação da Escritura, como também Cristo conclui: “A alma vale mais que o corpo, e o corpo vale mais que a comida” [Mt 6.25], Se, pois, Deus concede o mais importante, quanto mais dará o menos importante.
O quarto ofício: ligar e absolver pecados. Desse ofício não apenas se apropriaram e o arrogaram a si, mas dele derivaram arrogantemente a conclusão de que o direito de fazer leis pertence exclusivamente a eles. Pois “ligar” para eles é fazer leis, proibir e mandar, o que, de fato, é ligar as consciências, mas com mentiras e ilusões, onde não há razão nenhuma para ligar, como, por exemplo, quando proíbem núpcias e comidas criadas e instituídas por Deus. Por sua vez, entre eles “absolver” significa tomar dinheiro para dispensar de suas falazes ligaduras e leis, libertando, desse modo, ilusoriamente as consciências ligadas de modo mentiroso. Também fazem uso do ofício de ligar e absolver nas confissões e excomunhões, mas com nenhum direito e com abuso condenável.
Com essa rapinagem e peculato sacrílego alcançaram que o ofício de ligar e absolver, ou o ofício das chaves, está em parte alguma menos do que entre esses que, em toda parte, se jactam das chaves, com as quais não abrem nem fecham o céu para as consciências, mas as bolsas de todo mundo. Nós, porém, que somos cristãos, temos o ofício das chaves em comum, o que provei e demonstrei em tantos livretos contra o papa[10]. Pois cá está a Palavra de Cristo de Mt 18[.15], dirigida não somente aos apóstolos, mas evidentemente a todos os irmãos: “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o, e ganhaste o irmão”. E em seguida: “Se não der ouvidos à Igreja, seja para ti como gentio e publicano. Em verdade vos digo, tudo que ligardes na terra, será ligado no céu. Tudo que absolverdes na terra, será absolvido no céu” [Mt 18.17,18].
Aqui não precisamos demorar-nos com essas máscaras das máscaras que, por temeridade própria e sem abonações das Escrituras, inventam uma distinção entre direito das chaves e uso das chaves. Depois, conforme seu costume [184] vicioso, consideram já provado o que deveriam provar. Pois quando têm que provar que sua autoridade é algo diferente do que a autoridade comum da Igreja, eles tomam isso por já demonstrado e, depois, acrescentam essa sua fatídica distinção de que o direito das chaves pertenceria à Igreja, mas o uso seria da alçada dos bispos. Pura frivolidade, que rui por si só. Aqui Cristo confere tanto o direito quanto o uso a qualquer cristão, ao dizer: “Seja para ti como gentio” [Mt 18.17]. Quem é este “seja para ti”? A quem se dirige Cristo com esse pronome “ti”? Ao papa? Na verdade, dirige-se a todo e qualquer cristão. E ao dizer “seja para ti”, não apenas concede o direito, mas ordena o uso e a execução. Pois que significa dizer: “Seja para ti como gentio” senão somente: Não tenhas relações com ele, nega-lhe a comunhão? Isso é de fato excomungar, ligar e fechar o céu.
Isso é confirmado pelo que segue: “Tudo que ligares está ligado” [Mt 18.18]. Quem são esses aos quais se dirige? Não são todos os cristãos? Não é a Igreja? Pois se aqui não concedeu à Igreja o uso, mas somente o direito das chaves, afirmamos, com o mesmo argumento, que o uso jamais foi dado a alguém, também não a Pedro em Mt 16[.19|. Pois em toda parte as Palavras de Cristo, pelas quais delega o ofício de ligar e absolver, são as mesmas. Se em uma passagem ou referente a uma pessoa significam que foi concedido o direito, significam em toda a parte que o direito foi concedido. Se num lugar dizem que foi concedido o uso, significam em toda parte que foi concedido o uso. Pois não se nos permite conferir às palavras de Deus, colocadas nos mesmos termos em toda parte, numa passagem um sentido, noutra outro sentido, da maneira como esses mascarados ousam brincar com os mistérios de Deus com suas invenções.
Acabe-se, portanto, com as mentiras dos homens. As chaves pertencem a toda a Igreja e a qualquer um de seus membros, tanto por direito quanto pelo uso e de qualquer modo que seja, para não cometermos violência contra as palavras de Cristo, pelas quais, de modo absoluto e generalizado, diz a todos: “Seja para ti” e: “ganhaste teu irmão”; mais: “Tudo que, etc.”. Eu poderia citar como confirmação também a palavra dita somente a Pedro: “Eu te darei as chaves do reino dos céus” [Mt 16.19]. Igualmente esta outra: “Se dois concordarem sobre a terra”. Idem: “Se dois estiverem reunidos em meu nome, estou no meio deles” [Mt 18.19,20]. Em todas essas palavras se estabelece o pleníssimo direito e o mais concreto uso de ligar e absolver, a não ser que queiram negar ao próprio Cristo o direito e o uso das chaves, quando habita no meio de dois. Disso, porém, tratei com exaustão em outra parte.
Como já dissemos acima, o ministério da Palavra pertence a todos. Pois ligar e absolver, evidentemente, nada mais é do que pregar e aplicar o Evangelho. Que significa absolver, senão anunciar a remissão dos pecados perante Deus? Que significa ligar, senão retirar o Evangelho e anunciar a retenção dos pecados? Por isso, queiram ou não, as chaves pertencem a todos, visto que consistem no ministério de aplicar a Palavra de Deus.
[185] Contudo, que necessidade temos de reivindicarmos contenciosamente esse ofício para nós, que conhecemos a Cristo? Pois está demonstrado com suficiência que entre os papistas não há conhecimento de Cristo, e que a fé e o Evangelho são totalmente ignorados e agora também condenados. Sendo, porém, desconhecida a fé e Cristo ignorado, é impossível ver o que é pecado perante Deus. Pois a cegueira da descrença os obriga a chamar de bom o que é mau, e a chamar de mau o que é bom, e a errar totalmente o caminho. Pois, se ignoramos o que é pecado e boa obra, é impossível poder ligar ou absolver. Portanto, realmente queremos falar e pensar de acordo com Cristo: enquanto eles têm essa compreensão, o ofício de ligar e absolver não está nem pode estar presente entre os papistas e esses sacrificadores raspados, tampouco é possível que sejam sacerdotes ou que somente eles possuam esse ofício, ou que o possam transmitir a alguém por suas ordenações. Pois, que haverás de ligar se não sabes que deve ser ligado? Por isso seu furor prossegue na medida de sua cegueira. Fecham o céu e abrem o inferno para si mesmos e para os seus; enquanto ligam, condenam o Evangelho e, ao absolverem, provam suas tradições. Por causa desse seu abuso perverso e sacrílego, perderam as chaves tanto de direito como quanto ao uso.
O quinto ofício é sacrificar. Esta é a coroa da glória dos ébrios de Efraim[11]. Por meio desse ofício, eles se separaram de nós e deixaram o mundo inteiro estupefato. Baseados nas estúpidas e mais imbecis mentiras, transformaram o Sacramento [da Santa Ceia] em sacrifício, sobre o que já falamos acima. Por isso, agora, seremos breves. Invocamos como testemunhas abonações do Novo Testamento, às quais apelamos também contra satanás, e afirmamos que no Novo Testamento não existe nenhum sacrifício, exceto aquele um, comum a todos, conforme Rm 12[.1], onde Paulo nos ensina a oferecer nossos corpos por sacrifício, assim como Cristo sacrificou o seu por nós na cruz. Nesse sacrifício, ele encerra o sacrifício de louvor e ação de graças. Também Pedro ordena em 1Pe 2[.5] que ofereçamos sacrifícios espirituais, aceitos por Deus por meio de Cristo, isso é, a nós mesmos, e não ouro ou animais.
Por isso, o que eles jactam como sacrifício singular, na verdade, é um sacrifício singular de seu singular sacerdócio, do qual, porém, de forma alguma, qualquer cristão é, quer ou deve querer ser participante. Pelo contrário, deverá detestá-lo como perversidade e idolatria da suprema blasfêmia e desejar estar o mais distante possível de sua comunhão, por mais que aleguem o antigo uso e sua universalidade. Pois não erra menos quem erra na companhia de muitos, nem arde menos quem arde na companhia de muitos. Portanto, permanece firme e seguro neste ponto: na Igreja existe somente este único sacrifício, a saber, nosso corpo. Visto, pois, que hoje não pode existir nenhum sacrifício a não ser aquele que é sacrificado e realizado pela Palavra de Deus e, sendo a Palavra propriedade de todos (como já dissemos), também o sacrifício deve pertencer a todos.
[186] Ora, visto que na Igreja só podem existir sacrifícios espirituais, conforme diz Pedro, ou seja, os que são realizados em espírito e verdade, é impossível que sejam oferecidos, a não ser por alguém que é espiritual, isto é, pelo cristão que tem o Espírito de Cristo. Mas aos papistas agrada somente sua invenção, com a qual escarnecem que seu sacrifício também pode ser oferecido por criminosos, de forma nenhuma espirituais. Querem que seu sacrifício seja agradável pela realização em si, sem considerar a pessoa que o oferece[12]. Assim, esses abomináveis sacrílegos são convencidos por seu próprio testemunho, porque ensinam que Deus se agrada da oferta de Caim, embora não se agradasse de Caim. Pois o sacrifício deles (conforme eles mesmos se gloriam) é uma obra externa, inclusive quando realizado por uma pessoa desagradável e condenada, quando, na verdade, absolutamente nada agrada senão, antes de mais nada, a pessoa, como foi aceitável a pessoa de Abel. Isso, porém, acontece pela fé e pelo Espírito, não por meio de sacrifício. Portanto, visto que eles próprios são obrigados a confessar que, em grande parte, seus sacrificadores não são espirituais e que, não obstante, eles não podem ser sacrificadores se não forem espirituais, é certo que seu sacrifício não é eclesiástico, mas uma mentira humana.
O sexto ofício é orar pelos outros. De que modo repugnante e impudico enganaram o mundo neste ponto, esses mascarados, fazendo da verdadeira Igreja uma sinagoga fictícia. Isso é por demais infame de ouvir. Pois Cristo legou sua oração dominical a todos os seus cristãos. Somente esse fato basta para podermos provar e confirmar com suficiência que só existe um sacerdócio e que ele pertence a todos e que, por outro lado, o sacerdócio papista é mera mentira, inventado fora da Igreja e introduzido na Igreja por mera impudicícia. Orar pelos outros significa servir de intermediador e interpelar a Deus, o que compete somente a Cristo e a todos os seus irmãos (visto que também os papistas querem ser chamados de sacerdotes em primeiro lugar pelo fato de orarem pelos cristãos leigos, sim, isso é seu Dagom[13] e o único Deus de seu ventre). Se essa oração é ordenada a todos, não resta dúvida que foi ordenado a todos a exercer a função do sacerdócio.
Assim, talvez não saibas se foi mais por ignorância ou mais por temeridade que esses mascarados não provaram a força e o ofício da oração dominical, porque também eles próprios ensinaram que ela pertence a todos. Não obstante, arrogaram exclusivamente para si o ofício da oração ou o ofício sacerdotal, privando dele todos os demais. Pois que significa dizer: “Somente nós somos sacerdotes, vós sois leigos”, senão: somente nós somos cristãos e capazes de orar. Vós sois gentios, incapazes de orar, mas podeis receber ajuda através de nossas orações? Por outra, que significa dizer: “Vós também deveis orar, não somente nós”, senão: Vós também sois sacerdotes e irmãos de Cristo, capazes de interceder perante Deus por todos?
Como, porém, é justa a vingança de Deus contra esses abomináveis intercessores. Visto que querem ser os únicos capazes de orar pelo povo, tornaram-se, por maravilhosa decisão de Deus, nada mais que pinturas de pessoas que oram, de maneira que a iniquidade, que pensou [187] enganar a Deus e aos homens, foi obrigada a enganar somente a si mesma. Pois quem realmente ora em todo esse enorme universo de colégios, monastérios e prebendas? As palavras de oração, na verdade, brotam de seus lábios e acham que sabem cantar como Davi, como diz Amós [6.5], mas Isaías afirma que seu canto não passa de algazarra, ao dizer: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” [Is 29.13].
Assim podes encontrar entre eles muitos que, por quarenta anos ou por toda a vida, recitaram as sagradas palavras das orações com os lábios, mas sequer por um momento fizeram uma única oração perante Deus. E esses monstros seriam dignos de serem considerados e chamados sacerdotes? Que coloquemos à disposição deles tão grandes templos, tão elevadas somas e tão altos tributos, e lhes submetamos os reinos do mundo inteiro? E, por fim, também os verdadeiros sacerdotes e intercessores de Deus, ou seja, os cristãos, pelos quais deveriam orar? Quando Deus sequer se digna a compará-los a gentios, esses que esperam ser ouvidos por suas muitas palavras[14], na verdade, nem cogitam ou esperam serem ouvidos e, também, não fazem todo esse palavrório e verbosidade na esperança de serem ouvidos, mas apenas para louvar a Deus com os lábios e para, com essa ostentação, merecerem o dinheiro do povo e cevarem suas barrigas. Não obstante, por autoridade do papa, são sacerdotes de Deus, aliás, de satanás, o deus do presente século, e oram por nós, isto é, provocam a ira do Deus verdadeiro contra nós.
Ouçamos, porém, a Cristo, juiz e árbitro nesse caso. Ele diz: “Deus é Espírito, e quem quer adorar, deve adorar em Espírito e verdade, pois é essa espécie de adoradores que o Pai quer” [Jo 4.24,23], a saber, não os que oram neste monte ou em Jerusalém. Estabelecida essa sentença definitiva da Majestade, também nós estamos confiantes e, por autoridade divina, afirmamos com plena confiança que o papa com seus seguidores possui um sacerdócio singular e um singular ofício de orar, diverso do de todos os cristãos, não, porém, um ofício pelo qual sejam sacerdotes e intercessores, mas máscaras e figuras de sacerdotes e intercessores. De resto, somente os cristãos e todos os que clamam no Espírito “Aba, Pai” [Rm 8.15], somente eles oram e somente eles são sacerdotes.
O sétimo e último ofício é julgar e decidir sobre dogmas. Evidentemente, não é sem razão que esses mascarados sacerdotais e cristãos hipócritas usurparam para si esse ofício. Pois previram que, se permitissem que esse ofício continuasse pertencendo a todos, não poderiam monopolizar nenhum dos privilégios supramencionados. Pois, estando os ouvintes privados do poder de julgar, que não poderá e ousará fazer um mestre, ainda que fosse pior que o satanás (se isso fosse possível)? Por outro lado, sendo o julgamento permitido ou até ordenado aos ouvintes, que poderá e ousará um mestre, ainda que seja maior do que um anjo do céu? Se isso for permitido, Paulo não pode repreender somente a Pedro, mas condenar inclusive os anjos do céu[15]. Por isso, com que temor e tremor teriam falado os bispos e concílios e decretado sobre os ofícios de ensinar, batizar, sacrificar, ligar, orar [188] e julgar, se tivessem que temer o juízo dos ouvintes. Sim, se tivesse prevalecido esse juízo, jamais teria surgido o papado universal. Por isso, estiveram bem aconselhados quando reivindicaram esse ofício para si.
No entanto, puderam fazer isso e prevaleceram “até que se cumpriu a ira de Deus”, como diz Daniel [11.36]. Agora, porém, nos resplandeceu o advento do Salvador e começou a destruir o iníquo, e o sopro de sua boca matou o adversário que se exaltou acima de todo culto a Deus[16]. Agora prevalece a Palavra de Cristo em João 10[.27,5]: “Minhas ovelhas ouvem minha voz, e não dão ouvidos à voz de outros”. E em Mt 7[.15]: “Acautelai-vos dos falsos profetas”. Mt 16[.6]: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus, ou seja, dos hipócritas”. Mt 23[.2s.]: “Na cátedra de Moisés estão sentados os escribas e fariseus. Tudo que vos ordenam observar, observai e fazei-o; em suas obras, porém, não os imiteis”. Por essas e muitas outras abonações, tanto do Evangelho quanto de toda a Escritura, somos admoestados a não dar crédito a falsos mestres. Que nos ensina isso senão que cada um de nós tenha cuidado de sua salvação, tenha certeza do que deve crer e a que seguir, e seja juiz inteiramente livre de tudo que lhe ensinam, sendo ensinado interiormente só por Deus, conforme Jo 6[.45]? Pois não serás condenado ou salvo pela doutrina de alguém outro, seja ela verdadeira ou falsa, mas somente por tua própria fé. Portanto, cada qual ensine o que quiser, a ti, porém, compete observar se o que crês te resulta em supremo perigo ou benefício.
Em 1Co 14[.30], porém, Paulo, como o mais forte de todos, prendeu esse valente em sua própria casa e lhe roubou os armamentos, quando diz: “Se o que estiver sentado tiver uma revelação, silencie o primeiro”. E depois: “Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” [1Co 14.32]. E mais: “Podeis profetizar todos um de cada vez” [1Co 14.31]. De que adianta aqui o blá-blá-blá ébrio do papa e de seus asseclas, por mais séculos que estivesse estado em uso: “Nós ordenamos, nós recomendamos seriamente, a Igreja de Roma é mestra das igrejas e a regra de fé”? Pois que seja, que fique sentada e seja mestra. Mas aqui se lhe ordena calar, se o que está sentado tiver revelação. E não é só ela que pode profetizar, mas podemos profetizar todos, um após o outro, diz Paulo, mestre e censor inclusive de Pedro em sua insinceridade[17]. Quanto mais devemos nós julgar com confiança a Igreja romana simuladora e fingida, e não tolerar que sejamos julgados por ela, sob o perigo inclusive de perdermos a própria salvação e de negarmos a Cristo.
Aqui, também, deve ser observada a bela sabedoria dessas máscaras, o modo repugnante com que eles se voltam contra si mesmos, visto que se opõem a Deus e a tudo que é de Deus. Acreditamos que eles creem, ao menos é isso que os vemos propalar, que são os guias e pastores do povo cristão. Mas eu também creio, e eles estão obrigados a confessá-lo, que cristão é aquele que tem o Espírito Santo que (como diz Cristo) tudo ensinará[18]. E João diz: “Sua unção tudo vos ensinará” [1Jo 2.27], isto é, em breves palavras, o cristão está tão certo do que deve crer e do que não deve, que quererá ou está disposto a morrer por isso. Agora, por favor, que afronta essa dos papistas que se jactam [189]: “Aos leigos compete obedecer a nós, não a si mesmos”! Que é isso senão dizer: Confessamos que todo cristão tem o Espírito Santo, pelo qual sabem, com toda certeza, o que deve ser crido e o que não. Entretanto, visto que o Espírito Santo nos é submisso, somos bem mais instruídos do que ele. Por isso ele nos deve ser submisso e obedecer.
Portanto, por essa razão, quiseram tomar mestres a si mesmos, a fim de poderem ensinar o que quisessem, visto que não precisam temer nenhum julgamento. Uma vez conseguido isso, foi fácil para eles usurpar tudo que pertence a Deus e aos homens, tomando-se evidentemente deuses. A nós, porém, foi dito: “Um só é vosso mestre, Cristo. Vós, porém, sois irmãos” [Mt 23.8,10]. Por isso estamos todos sujeitos à mesma lei. Também a fraternidade e a comunhão não permitem que um seja superior ao outro, ou tenha maior herança ou direito, ainda mais em questões espirituais, das quais estamos tratando. Por isso não temos apenas o direito de reivindicar o ofício de julgar, bem como todos os demais acima enumerados, mas, se não o recuperarmos, estaremos negando a Cristo como irmão. Pois aqui não estamos tratando de assuntos opcionais ou lícitos, mas do que é prescrito e necessário. Maldito aquele que reconhece a tirania do papa, mas bendito quem a rejeita em apostasia cristã.
Tudo que dissemos refere-se ao direito comum dos cristãos. Pois, visto que todas essas coisas pertencem a todos os cristãos (como provamos), a ninguém é permitido interferir por autoridade própria ou arrebatar para si o que é de todos. Faze uso desse direito e executa-o onde não há ninguém que possui direito similar.
Mas essa comunhão de direitos exige que um, ou quantos a comunidade queira, sejam escolhidos ou aceitos e que, em lugar e em nome de todos que têm o mesmo direito, execute esses ofícios publicamente, para que não surja uma confusão torpe entre o povo de Deus, e se instale uma Babilônia na Igreja, mas todas as coisas sejam feitas em ordem, como ensinou o apóstolo[19]. Pois uma coisa é executar a lei pública, outra, fazer uso do direito em caso de necessidade. A lei pública não pode ser executada sem o consenso de todos ou da Igreja. Em caso de necessidade, pode fazer uso dela quem quiser.
Abordemos agora os sacerdotes papísticos e lhes peçamos que nos mostrem se seu sacerdócio tem outros ofícios do que esses. Se tiver outros, certamente não é cristão. Se tiver os mesmos, ele não é nada de especial. Assim, concluímos que eles, não importando para que lado se voltem, ou não possuem nenhum sacerdócio diferente que os leigos, ou possuem o sacerdócio de satanás. Pois Cristo ensina a reconhecer toda árvore por seus frutos[20]. Acabamos de ver os frutos de nosso sacerdócio comum. Ou mostram frutos diferentes desses, ou negam que são sacerdotes. Pois trazer frutos desse tipo pública ou privativamente, não prova que se trata de um ou outro sacerdócio, mas de um e outro uso diferente do mesmo sacerdócio. Porque, se nada mais têm a mostrar do que sua tonsura, a unção e a longa túnica para provar seu sacerdócio, permitimos-lhes que se gloriem dessas coisas sórdidas, pois sabemos que é fácil raspar um porco ou um tronco, ungi-lo e vesti-lo com uma longa túnica.
Nós permanecemos firmes no seguinte: não existe outra Palavra de Deus além daquela que é ordenada a ser pregada a todos os cristãos. Não existe outro Batismo senão aquele que [190] qualquer cristão pode conceder. Não existe outra memória da Ceia do Senhor além daquela que qualquer cristão pode realizar, e que Cristo instituiu. Não existe outro pecado além daquele que qualquer cristão deve ligar ou absolver. Não existe outro sacrifício além do corpo de qualquer cristão. Ninguém pode orar a não ser o cristão. Ninguém pode julgar doutrinas senão o cristão. Esses são os ofícios sacerdotais e régios. Portanto, ou os papistas mostram outros ofícios dos sacerdotes, ou renunciam ao sacerdócio. Tonsura, unção, vestimenta e outros ritos introduzidos pela superstição humana não nos comovem, mesmo que nos sejam transmitidos por um anjo do céu, muito menos se argumentarem com o uso antigo, com a opinião da maioria ou a reconhecida autoridade.
Creio que de tudo isso se conclui que não podem nem devem ser chamados de sacerdotes aqueles que administram os sacramentos e a Palavra entre o povo. A razão por que são chamados sacerdotes procede ou do ritual dos gentios, ou é adoção de reminiscências do povo judeu, o que resultou em máximo prejuízo para a Igreja. De acordo com as escrituras evangélicas, seria melhor chamá-los de ministros, diáconos, bispos, administradores, sendo com maior frequência, também, chamados de presbíteros por causa de sua idade. Em 1Co 4[.1] Paulo diz o seguinte: “Assim se nos considere como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus”. Paulo não diz: “como sacerdotes de Cristo”, porque bem sabia, que o nome e o ofício do sacerdote, era comum a todos. Daí procede a célebre palavra de Paulo “administração” ou “economia”, “ministério”, “ministro”, “servo”, “sirvo no Evangelho”, etc., para, de nenhum modo, erigir um status, uma ordem, um direito ou dignidade (como querem os nossos), recomendando apenas o ofício e o serviço, deixando o direito e a dignidade do sacerdócio para a comunidade.
E se são apenas ministros, o caráter indelével já desaparece e o caráter eterno do sacerdócio não passa de uma ficção. Um ministro pode ser deposto, se deixar de ser fiel. Por outro lado, deve-se mantê-lo no ministério enquanto o merecer e enquanto agradar à Igreja, como qualquer outro administrador civil entre irmãos iguais. Sim, o ministro espiritual está mais sujeito à remoção do que qualquer servidor civil, porque se toma mais intolerável do que o civil quando se toma infiel, que só 20 pode causar prejuízo em bens desta vida, enquanto aquele devasta os bens eternos. Por isso compete aos demais irmãos excomungá-lo e substituí-lo por outro.
Com essas firmíssimas e confiabilíssimas abonações da Escritura (se é que queremos dar crédito à Palavra de Deus) está superada essa miserável necessidade que até hoje obriga a Boêmia quase a mendigar o sacerdócio raspado e suportar, inclusive, os mais indignos dentre eles. Pois aqui fica mais claro que a luz e mais certo que a fé de onde se devem pedir sacerdotes ou ministros da Palavra, a saber, do rebanho de Cristo e de nenhum outro lugar. Pois mostramos com clareza que toda pessoa tem o direito de ministrar a Palavra, aliás, que isso é inclusive preceituado ao se constatar que não existe ninguém para ensinar, ou que não ensinam corretamente os que tendes agora, como Paulo o coloca em 1Co 14[.29ss.], a fim de que o poder de Deus seja anunciado através de todos nós. Quanto mais uma comunidade toda não terá o direito e a ordem de comissionar em lugar dela mesma, [191] por sufrágio de todos, uma ou mais pessoas com esse ofício, e que essas, por sua vez, com a aprovação da comunidade, também transmitam esse ofício a outros.
Assim diz Paulo em 2Timóteo 2[.2]: “Isso transmite a homens fiéis e idôneos para ensinar também a outros”. Aqui Paulo rejeita toda essa pompa de raspar [a cabeça], ungir e ordenar, e exige somente que sejam idôneos para ensinar; e quer simplesmente que a esses se encomende a Palavra. Se o ofício de ensinar a Palavra for transmitido a alguém, se lhe transmite simultaneamente tudo que na Igreja acontece através da Palavra, a saber, o ofício de batizar, consagrar, ligar, absolver, orar, julgar. Pois o ofício da pregação do Evangelho é o ofício supremo, ou seja, o ofício apostólico, que fundamenta todos os demais, sobre o qual todos devem alicerçar-se, como, por exemplo, os ofícios dos mestres, profetas, administradores, das línguas, dom de curar e socorrer, conforme Paulo os enumera em 1Co 12[.28]. Pois também Cristo antes de mais nada evangelizou, incumbido que estava do ofício supremo, e não batizou. Também Paulo se gloriou de não ter sido enviado para batizar, como ofício secundário, mas para evangelizar, como primeiro ofício.
Mas, também, a necessidade nos obriga a isso e a compreensão comum da fé o aconselha. Pois, visto que a Igreja nasce através da Palavra, é alimentada, preservada e fortalecida por ela, é evidente que ela não pode existir sem a Palavra. Se, porém, está sem a Palavra, deixa de ser Igreja. Depois, visto que todos nasceram do Batismo para o ministério da Palavra e os bispos papais não querem conceder ministros da Palavra, a não ser esses que querem destruir a Palavra de Deus e aniquilar a Igreja, resta-nos ou permitir que a Igreja de Deus pereça sem a Palavra, ou então, convocam uma reunião e, em consenso geral, escolher, dentre a comunidade, um ou quantos forem necessários e que sejam idôneos e, por meio de oração e imposição das mãos, recomendem e confirmem-nos a toda a comunidade. Esses então sejam reconhecidos e honrados como legítimos pastores e ministros da Palavra, crendo firmemente que isso foi feito e realizado por Deus, pois é dessa maneira que acontece e se realiza o consenso da comunidade dos fiéis, que reconhecem o Evangelho e o professam.
Se todos os argumentos citados não forem concludentes, deveria ser suficiente admoestar e corroborar o que Cristo diz em Mateus 18[.19,20]: “Se dois consentirem na terra sobre qualquer coisa, tudo que pedirem lhes será feito por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou no meio deles”. Portanto, se o consenso de três ou dois tudo pode em nome de Deus e, se Cristo se confessa como o autor do que eles fazem, quanto mais não devemos crer que isso acontece ou acontecerá com sua aprovação e por sua ação, quando estivermos reunidos em seu nome e oramos e elegemos pastores e ministros da Palavra dentre nós mesmos que, mesmo antes dessa eleição, já nascemos e fomos chamados a esse mesmo ministério através do Batismo.
Se perguntarmos por algum exemplo, temos o de Apolo, a respeito do qual lemos em At 18[.24ss.] que ele veio a Éfeso sem qualquer vocação ou ordenação e pregou fervorosamente, e convenceu os judeus com poder. Com que direito, pergunto eu, esse homem exerceu o ministério da Palavra? [192] Unicamente pelo direito geral e comum, descrito em 1Co 14[.30]: “Se o que estiver sentado tiver uma revelação, silencie o primeiro”; e em 1Pedro 2[.9]: “para anunciardes suas virtudes”. E posteriormente, esse mesmo homem também se tomou apóstolo, sem qualquer ordenação adicional, não apenas exercendo o ministério da Palavra, mas sendo também muito útil aos que já criam. Do mesmo modo, deve proceder qualquer cristão ao ver que a Palavra o necessita e se for idôneo, mesmo que não seja chamado por toda a comunidade, quanto mais deverá fazê-lo se lho pedirem e for chamado pelos irmãos, seus iguais, ou por toda a congregação.
Outro exemplo são Estêvão e Filipe, ordenados apenas para servirem à mesa[21]. Não obstante, Estêvão faz sinais e prodígios entre o povo, debate com as sinagogas e refuta o concílio dos judeus pela palavra do Espírito. E Filipe converteu os samaritanos e percorreu Azoto e Cesaréia[22]. Dize-me, com que direito e autoridade? Ninguém lho solicitou e ninguém o chamou. Fizeram isso por iniciativa própria, baseados no direito geral, visto que se lhes oferecia uma porta aberta e viram que o povo ignorante e privado da Palavra necessitava de seu serviço. Quanto mais o teriam feito se tivessem sido solicitados e chamados por alguns ou por toda a comunidade! E o eunuco convertido por Filipe[23], se realmente permaneceu cristão, como é de se crer, sem dúvida, ensinou a Palavra de Deus a muitos, porque lhe fora ordenado anunciar as virtudes daquele que o chamou das trevas para sua maravilhosa luz[24]. A Palavra anunciada por ele resultou na fé de muitos, visto que a Palavra de Deus não retoma vazia[25]. De sua fé nasceu uma Igreja e, pela Palavra, esta Igreja recebeu e exerceu os ofícios de batizar, de ensinar e todos os ofícios supramencionados. O eunuco levou a cabo tudo isso exclusivamente pelo direito que lhe conferia o Batismo e sua fé, especialmente, porque ali não existiam outros [encarregados desse ministério].
Agora só falta, caríssimos senhores, que vos revistais de uma fé firme, pela qual possais aconselhar vossa Boêmia; digo que aqui é necessária uma fé corajosa. Pois estamos escrevendo essas coisas para as pessoas que creem; os que não creem de qualquer forma não as entendem. Para elas também não faz diferença ter ou não ter pastores, visto que não são cristãos nem Igreja de Deus aqueles que não se deixam convencer por abonações bíblicas e exemplos evidentes, mas se deixam convencer por essas máscaras levianas, as tonsuras, unções e paramentos, que não têm abonações bíblicas, mas são aprovados apenas pelo longo uso e pelo costume de muitos. Um cristão devoto tem que tirar da cabeça essas coisas e prestar atenção única e exclusivamente à Palavra de Deus e, em fé plena, crer que pode fazer e conseguir tudo que, conforme seu conhecimento, é prometido por ela.
“Isso é uma inovação”, dizem eles. “Não há precedente de eleger e criar pastores desse modo.” Respondo: Trata-se de um modo muito antigo e comprovado pelo exemplo dos apóstolos e seus discípulos, mas abolido e extinto pelos papistas, por exemplo contrário e doutrinas pestilentas. Por isso deveis empenhar tanto mais esforço no sentido de expulsar esse recente exemplo da pestilência e recuperar o antigo exemplo salutar. E depois [193], ainda que fosse uma inovação recente, se a Palavra de Deus nos ilumina e ordena, e a necessidade das almas compele a isso, a novidade do assunto não nos deve afetar e, sim, a majestade da Palavra. Ora, que não é novidade dentre as coisas que a fé faz? Acaso essa forma do ministério não foi novidade no tempo dos apóstolos? Não foi algo novo quando Abraão ofereceu o filho? Não foi novidade que os filhos de Israel atravessaram o mar? Acaso não será algo novo para mim que passei da morte para a vida? Em todas essas coisas a atenção está voltada para a Palavra de Deus, não para a novidade. Do contrário, se a novidade é motivo suficiente para não nos importarmos com a questão, já não é possível crer jamais em qualquer Palavra de Deus.
Portanto, meus irmãos, acreditai na Palavra de Deus e a novidade não vos comoverá, justamente, conforme vosso próprio exemplo. Pois se a novidade vale como argumento hoje, por que não valeu quando vós boêmios, como únicos, resististes ao papa e fizestes tudo aquilo por causa de João Hus[26]? Não foi isso algo novo e sem precedentes, sim, contrário ao exemplo de todo o mundo até o dia de hoje? E isso numa época em que não estivestes tão firmes por abonações tão manifestas da Escritura como estais no presente caso. Naquela ocasião fostes corajosos somente para seguir, confessar e proteger o direito, por mais que estivesse em desuso e extinto, quando não havia nenhuma necessidade das almas, ou uma necessidade menor. Por que não iríeis agora seguir, confessar e proteger vosso direito abolido, visto que estais armados de tantos escudos e armamentos do arsenal de Davi[27] e quando, além disso, existe uma necessidade tão urgente e um miserável cativeiro das almas e, por outro lado, está a convidar tão grande liberdade, tantos recursos e tão boa ocasião? Se essa novidade oferecer alguma dificuldade, isso se resolverá com procedimento moderado; certamente será mais fácil do que quando vos separastes da tirania papística, desde que o ouseis no Senhor. E o Senhor estará convosco.
Procedei da seguinte forma: em primeiro lugar, rogai a Deus com orações tanto privadas quanto públicas, pois está em jogo uma grande causa. E nela não me comove tanto sua novidade quanto sua magnitude, quer dizer que não quero que empreendais qualquer coisa por vossos próprias forças ou sabedoria; atacai o problema com temor e tremor, em humildade, lamentando e confessando perante o propiciatório de Deus e o trono de sua graça[28], que é Jesus Cristo, Bispo de nossas almas[29], que merecestes vossa miséria e vosso cativeiro mediante vossos pecados; suplicai e orai que envie a vossos corações seu Espírito, que colabora convosco, ou melhor, que opera em vós o querer e o realizar[30]. Pois, para que esse empreendimento seja iniciado auspiciosamente e continue de modo salutar, é necessário que seja feito no poder divino que Deus concede (como diz Pedro[31]).
Depois de haverdes orado desse modo, não duvideis que é fiel aquele ao qual orastes para dar o que pedistes. Ele abrirá ao que bate e será encontrado pelos que pedem[32], para que, dessa maneira, estejais absolutamente certos de que não sois vós que estais promovendo essa causa e, sim, que sois levados a promovê-la. Depois de convocados e reunidos livremente aqueles cujos corações Deus tocou, de modo que tenham o mesmo pensamento e sejam unânimes convosco, mãos à obra e elegei um ou quantos quiserdes, que sejam considerados dignos. Depois, os líderes dentre vós devem impor-lhes as mãos, confirmando e recomendando-os ao povo e [194] à Igreja, ou a toda a comunidade. Sejam eles vossos bispos, ministros ou pastores. Amém. Paulo ensina suficientemente em Tt 1[.6ss.] e 1Tm 3[.2ss.] que pessoas devem ser escolhidas.
Não considero necessário que essa forma de eleição seja adotada imediatamente na assembleia nacional de todas as comunidades da Boêmia. Mas se algumas cidades adotarem sua norma individualmente, uma poderá seguir o exemplo da outra. A assembleia nacional deve decidir se essa forma deve ser adotada em toda a Boêmia, ou se uma parte pode adotá-la e outra, adiar a decisão ou rejeitá-la totalmente. Pois ninguém deve ser coagido à fé, mas é preciso dar lugar e honra ao Espírito Santo, para que sopre onde quiser. Também não é de esperar que essas coisas irão agradar a todos, pelo menos não de momento. Também não vos deve afetar o fato de não haver o consenso de todos, e se muitos não concordam, isso vos deve encorajar tanto mais. Basta que de início apenas poucos comecem com esse exemplo e que, depois de introduzido o uso e no decurso do tempo, convidem a todo o povo a seguir o exemplo. Onde acontecer que, com a ajuda de Deus, muitas cidades escolherem seus pastores dessa maneira, esses pastores podem, se quiserem, reunir-se entre si e escolher dentre eles um ou mais para serem seus superiores, isto é, que lhes sirvam e os visitem, como Pedro visitou as igrejas em Atos dos Apóstolos [8.14ss.; 9.32ss.], até que a Boêmia retome ao legítimo e evangélico arcebispado, rico não de muitos rendimentos e poderes, mas de muitos ministérios e visitas às igrejas.
Se, porém, fordes fracos demais no conjunto para tentar esse rito livre e apostólico de instituir sacerdotes, queremos tolerar vossa fraqueza e permitir que aceiteis os já ordenados pelos bispos papistas, como, por exemplo, vosso Galo63[33] e outros semelhantes a ele, e useis a esses em lugar de bispos papais, para que chamem, escolham e firmem os que considerarem idôneos e que estais dispostos a tolerar, conforme o exposto acima e a doutrina de Paulo. Pois de acordo com Paulo, certamente é bispo a pessoa que está encarregada [de pregar] a Palavra, como é o caso de vosso Galo embora não ostente ínfula, nem cajado, nem outro fausto ou pompa qualquer, coisas essas que só servem para impressionar o povo estulto. Fazemos essa concessão até que cresçais e entendais plenamente o que é o poder da Palavra de Deus. Evidentemente não podemos aconselhar-vos, por ora, de outra forma. Pois não podeis aceitar as ordenações e os ordenados papistas sem cometer pecado ou impiedade e, por conseguinte, sem o perigo de perder as almas. Se aqui vos surgirem dúvidas se sois de fato Igreja de Deus, digo-vos que não se reconhece a Igreja por costumes, mas pela Palavra, conforme 1Co 14[.24,25], onde [Paulo] diz que, se um descrente entrar na Igreja e os encontrar profetizando, cairia de rosto em terra e confessaria que Deus de fato habita no meio deles. Isso, porém, é certo que a Palavra de Deus e o conhecimento de Cristo está ricamente presente entre vós. E onde quer que esteja a Palavra de Deus associada ao conhecimento de Cristo, eles não são em vão, por mais deficientes que sejam em costumes externos os que os possuem. Pois a Igreja, embora fraca por causa de seus pecados, [195], não é ímpia na Palavra. Certamente ela peca, mas não nega nem ignora a Palavra. Por isso não se deve repudiar os que apreciam e confessam a Palavra, embora não resplandeçam em esplêndida santidade, desde que não vivam obstinadamente em pecados manifestos. Por isso não há razão nenhuma para duvidardes que a Igreja de Deus está entre vós, ainda que sejam apenas dez ou seis que têm a Palavra. O que esses fizerem nessa causa, inclusive com o consentimento dos outros que ainda não têm a Palavra, certamente é como se Cristo o fizesse, desde que procedam com humildade e orações, como já dissemos.
Por fim, o que temo que vá ser o maior obstáculo a esse plano é que essa causa, como todas as demais que vêm de Deus, não ficará sem sua cruz. Pois satanás não dorme nem ignora o que pretendemos com essa causa, e não será preguiçoso em sua oposição. Ele é o príncipe do mundo e percebe nossos pensamentos como nós percebemos os dele. Falo dessa cruz porque o poder do mundo e o príncipe dos gentios, em seu poder, não vos permitirão executar esse plano. Vão tentar impedi-lo mesmo antes que vós decidis como proceder. É assim que, se agir no coração dos descrentes aquele que também é o deus do presente século, não somente príncipe, de maneira que não há nenhuma esperança de que essas coisas possam acontecer em paz e tranquilidade externa, mas no maior tumulto e com tantas perturbações que vai parecer que o barquinho coberto de ondas certamente submergirá.
Aqui nada tenho a dizer senão o que diz Pedro: “É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” [At 5.29]. Pois, uma vez estabelecido que essa causa é santa e agradável a Deus, como é de fato, é preciso firmar-se sobre uma rocha e desprezar as ondas assustadoras, os ventos ameaçadores e as chuvas torrenciais, nada mais esperando a não ser que paz e tranquilidade, graça e honra sobrevenham àqueles que conhecem e fazem o que agrada a Deus. Pois é por isso que Cristo envia esse fogo à terra e suscita o terrível beemote[34], não porque fosse tão cruel, mas para nos ensinar que aquilo que empreendemos não procede de nossa pouca força, mas do poder divino, a fim de não nos gloriarmos ou nos tomarmos presunçosos contra a graça de Deus; antes, desesperando de nós mesmos, calemos e deixemos que ele lute por nós (como a Escritura insiste tantas vezes) e, apesar de nossa fraqueza, vença toda a força e poder; e, enquanto silenciamos, ele dominará a revolta e as ondas do mar tão grande, como está escrito: "Vossa força consistirá no silêncio e na esperança” [Is 30.15], e: "Meti-o num duro combate, para que vencesse” [Sab 10.12].
Sobretudo vos deve impelir a prosseguir quando vedes a resistência que fazem os poderosos e os príncipes, baseados no firme argumento de que vosso empreendimento procede de Deus e que o próprio Deus, cuja Palavra tendes, está convosco. Pois, se esse plano fosse do mundo, o mundo não apenas permitiria, mas também, amaria o que é seu[35]. Agora, porém, como ele não é do mundo, mas Deus o colocou em vossos corações por meio de sua Palavra, por essa razão o mundo não somente não o permitirá, [196] mas o odiará e perseguirá. "Mas sede confiantes, ele venceu o mundo” [Jo 16.33]. "E aquele que está em nós é maior do que aquele que está no mundo” [1Jo 4.4], ainda que possa parecer que essa causa está sendo subvertida de tal maneira por tumultos e sedições que, também, os incrédulos temem que o céu virá abaixo. Nossa rocha, porém, não estremece diante dos trovões e relâmpagos[36] e não teme o céu negro e nublado, nem se assusta "dos ventos tempestuosos e do rugir das tempestades”[37], mas está segura de si mesma e aguarda confiantemente a calmaria.
Por isso, "não temais, Judá e Jerusalém, mas permanecei firmes. Vereis o auxílio de Deus sobre vós. Avançai, e o Senhor estará convosco” [2Cr 20.17]. Pois não é novidade nem admira se o príncipe do mundo esbraveja quando sente seu reino periclitar. Que outra coisa poderia fazer? Preferiria ter sua casa em paz[38]. Visto, porém, que isso não é possível, recorre a suas armas extremas, ou seja, ao furor e à violência. "Ruge como um leão, procurando a quem devorar” [1Pe 5.8]. Depois de o termos conhecido como tal, por advertência de Deus, por que iríamos esperar que ele fosse diferente e não iríamos resistir-lhe tanto mais na fé? Por isso, permanecei firmes e prossegui, excelentes senhores. Armai-vos com a Palavra de Deus, a invencível e onipotente espada do Espírito. Ou encetais por esse caminho com uma fé forte, ou desisti totalmente. "Não lutaremos com carne e sangue, mas com as perversidades espirituais nos céus" [Ef 6.12]. Eu disse essas coisas (visto que era necessário) sobre a maneira de instruir ministros eclesiásticos, em minha simplicidade, satisfeito se motivei outras pessoas mais hábeis e instruídas do que eu apensarem e falarem algo mais pertinente. Pois nem todos têm competência para tudo. As funções estão repartidas e um só é o Senhor[39], que não opera apenas numa só pessoa, mas em todas, não conforme nós queremos, mas como ele quer.
Quanto ao mais, como reformar a missa e o culto a Deus, restaurar outros ofícios do ministério eclesiástico, outros irão se manifestar, ou eu próprio o farei noutra ocasião No entanto, se o ministro foi instituído segundo o Evangelho, ele próprio pode dispor de modo mais adequado nesse assunto, conforme lhe ensina a unção recebida Por agora basta se conseguirmos junto a Deus, por orações e votos, esse ministério, e que sejamos dignos de vê-lo alcançado e que nos alegremos com ele.
Fim.


[1] Cf. Lc 11.21,26.
[2] Cf. 1Rs 12.32s.
[3] Nero, imperador de Roma (54-68), durante cujo governo aconteceu a primeira perseguição aos cristãos em Roma. - Sardanaplo é o nome grego de Assurbanipal, rei da Assíria (668-626 a.C.).
[4] A doutrina católico romana distinguia entre mandamentos e conselhos evangélicos. O cumprimento os mandamentos é dever de todos os cristãos, mas o cumprimento dos conselhos evangélicos se exige somente dos “perfeitos”.
[5] Cf. também Gl 3.28; 1 Co 10.17; Ef 4.4; 5.30.
[6] Cf., p. ex., "À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão", in: OSel 2,282s.; "Do Cativeiro Babilônico da Igreja”, in: OSel 2,414s.; cf. também WA 8,247ss.
[7] Cf. WA 8,248,14ss.
[8] A Igreja romana conhece somente um sacramento da ordenação, o sacramento da ordenação sacerdotal; a ordenação a bispo não é sacramento, e denomina-se, por isso, consagração.
[9] Cf. Mt 7.3.
[10] Cf., p. ex. “Comentário de Lutero sobre a 13ª Tese a respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor)", in. OSel 1,275ss.; v. também WA 2,248s.; “Um Sermão sobre o Sacramento da Penitência”, in: OSel 1,401ss., especialmente p. 406, item 9; v. também WA 6,391ss.
[11] Cf. Is 28.1.
[12] No original: opere operati non operantis.
[13] Cf. 1Sm 5.2ss.
[14] Cf. Mt 6.7.
[15] Cf. Gl 1.8.
[16] Cf. 2Ts 2.8,4.
[17] Cf. Gl 2.14ss.
[18] Cf. Jo 14.26.
[19] Cf. 1Co 14.40.
[20] Cf. Mt 7.16ss.
[21] Cf. At 6.5-6.
[22] Cf. At 8.5ss.,40.
[23] Cf. At 8.36.
[24] Cf. 1Pe 2.9.
[25] Cf. Is 55.11.
[26] Cf. acima, p. 90, n. 26.
[27] Cf. Ct 4.4.
[28] Cf. Hb 4.16.
[29] Cf. 1Pe 2.25.
[30] Cf. Fp 2.13.
[31] Cf. 1Pe 4.11.
[32] Cf. Mt 7.8.
[33] Galo Cahera, v. acima, p. 82, n. 11.
[34] Cf. Jó 40.15.
[35] Cf. Jo 15.19.
[36] Cf. Juvenal 13,223. Cf. referência em WA 12,196, n. 1.
[37] Virgílio, Eneida 1,53. Cf. referência em WA 12,196, n. 2.
[38] Cf. Lc 11.21.

[39] Cf. 1Co 12.5-6 

Obras Selecionadas de Lutero, v. 7, pp 25 a 36
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