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Como Instituir Ministros na Igreja[1]
1523
Introdução
O motivo deste escrito é a vacância do arcebispado de Praga.
Roma deixou de provê-lo por considerar heréticos os calixtinos ou utraquistas[2],
embora o Concílio de Basiléia (1431-1449) os tenha declarado ortodoxos. Por
isso foi preciso que os futuros sacerdotes fossem ordenados na Itália, conforme
o rito romano, quer dizer, autorizados a administrar a missa ao povo apenas sob
uma espécie. O que os ordenados não podiam observar quando voltaram. Assim
começaram a sua atuação como perjuros o que se tomou insustentável. Aí
representantes da Boêmia, adeptos da Reforma, liderados pelo utraquista Galo
Cahera, dirigiram consulta a Martinho Lutero sobre como sair dessa situação
constrangedora[3].
Ele reage, insistindo com os boêmios que não deixassem mais consagrar ninguém
como vinham fazendo; o que, aliás, estaria em perfeita concordância com a
resistência, já histórica do povo tcheco, contra o papado. Pois Roma ordenaria
“sacrificadores” em vez de “servos da Palavra de Deus”[4].
Teria ideia totalmente errada do sacerdócio, razão pela qual sua ordenação
seria sacrílega[5].
Não veria que todos os crentes e batizados são sacerdotes[6]
e que todos os encargos que Roma confere aos seus consagrados pertencem à
comunidade inteira[7].
Agora, para exercer tais encargos é preciso que se encarreguem deles determinadas
pessoas[8].
Por conseguinte, Lutero aconselha que se aja como outrora o fizeram os apóstolos,
levando os seus problemas a Deus e depois, elegendo aqueles que são considerados
os mais dignos e capazes[9].
A “majestade da Palavra de Deus”[10]
se sobrepõe à tradição eclesiástica e autoriza e anima a Igreja a reorganizar o
ministério em situações novas e concretas. Tudo, no entanto, sem coação. Caso
os boêmios achassem esse conselho pesado demais para a sua fé, poderiam eleger
como bispo um sacerdote consagrado segundo o rito de Roma, talvez Galo[11].
Lutero conclui, enfatizando que haverá resistência na Igreja e fora dela contra
o procedimento recomendado, o que, para ele, prova justamente que o
empreendimento é “santo e agradável a Deus”[12].
Sob a orientação do autor, Paulo Speratus[13]
traduziu “Como instituir Ministros na Igreja para o alemão. A sua tradução saiu
no início de 1524 e alcançou ampla divulgação. Para tal ajudou a introdução
inspirada que Speratus lhe antepôs[14].
Inclusive, no mesmo ano, saíram mais três versões alemãs, todavia de qualidade
inferior[15].
A. Baeske
AO ILUSTRÍSSIMO SENADO e ao povo praguense, Martinho Lutero, pregador em
Wittenberg
Graça e paz de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
Muitas vezes, e por meio de cartas de muitas pessoas, fui
solicitado a vos escrever, ilustríssimos senhores, a respeito da maneira como
convocar e instituir um pastor da Igreja. Por fim, pressionado pela própria lei
da caridade, não pude mais negar-me. Sei que isso vai além de minhas forças e
tenho mais serviço em casa do que posso atender sozinho. Contudo, vossa causa o
reclama e a necessidade o exige, de modo que nada há que o amor não ouse, certo
de que tudo pode, contanto que o faça aquele que o fortalece. Portanto, o que
tenho vos dou, todavia de tal maneira 5 que [o assunto] fique inteiramente no
livre juízo de vós e de cada um. Pois meu ministério não me permite ir além do
que a autoridade alheia de mim exige. Além disso, não posso empreender qualquer
coisa a não ser através de meu conselho e exortação. O Senhor, porém, que
iniciou em vós o desejo de exigir e procurar essas coisas, cumprirá e satisfará
vosso esforço e desejo plena e copiosamente, para louvor de sua graça e de seu
Evangelho, ao qual seja a glória por todos os séculos dos séculos.
Advertência
Antes de mais nada confesso abertamente que, se alguém
espera de mim que irei ensinar ou modificar o rito ou o costume preservado até
hoje de tonsurar e ungir os sacerdotes, nada do que me proponho a dizer no
presente libelo lhe diz respeito. Deixo que eles usufruam de sua prática
religiosa ou crença, por mais comum, tradicional e propalada que seja. A nós
interessa a pura e verdadeira maneira prescrita nas Divinas Escrituras, pouco
preocupados com o que o uso ou os pais nos legaram ou praticaram nessa matéria.
Como já ensinamos suficientemente em outra ocasião, não devemos, de forma
alguma, nem nos convém, nem queremos submeter-nos às tradições humanas, por
mais sagradas e célebres que sejam, mas queremos estar totalmente acima delas,
conforme nosso arbítrio e liberdade cristã, conforme está escrito: “Tudo é
vosso, seja Pedro ou Paulo, mas vós sois de Cristo” [1 Co 3.22s.].
[170] Uma exortação a que não se aceitem ordenações papistas
Antes, porém, de chegarmos a nossa instituição, à
instituição cristã, é digno e justo analisar primeiro as ordenações (como as
chamam) papais e trazer à luz publicamente o “execramento”[16]
da ordenação deles, “para que sua iniquidade seja revelada e odiada” [Sl 36.2]
e aqueles que ainda aderem a ela, tenazmente, sejam persuadidos com mais
facilidade a se absterem dela. E, para começar com as coisas mais fáceis,
queremos ocupar-nos, primeiramente, com as razões pelas quais vós boêmios
estais sendo mais onerados do que outros povos.
Depois que satanás prevaleceu e os bispos e sacerdotes (como
são chamados) abandonaram o reino da Boêmia e o deixaram devastado e
abandonado, fostes forçados pelo poder dos bispos romanos, por miserável e dura
necessidade, a enviar anualmente vossos clérigos à Itália, a fim de comprarem a
ordenação papística, visto que os bispos da vizinhança, de forma alguma,
queriam dignar-se a ordená-los, porque vos consideravam obstinados hereges.
Quantos incômodos e perigos vos trouxe essa necessidade! Sem falar no que são
obrigados a sofrer em corpo e recursos, no grande desgaste da viagem e nos
custos entre estranhos, nas fadigas entre inimigos. Com quantas doenças,
péssimos costumes e consciências arruinadas retomam eles para vos governarem! O
mais lamentável em tudo isso, porém, é que sois obrigados a comprar essas
ordenações de vosso tirano e seus carrascos, os bispos, sob condições
repugnantes e desonestas, violentando a consciência, de maneira que jamais
alguém poderá gloriar-se de ter entrado no vosso aprisco de ovelhas pela porta[17].
O mais duro, porém, é ter que sofrer sempre e somente esses pastores que
entraram por outro lugar, menos pela porta.
Por esse motivo surgiu, por fim, a extremamente cruel
ocasião para qualquer tratante, apóstata e os que não foram tolerados em
nenhuma parte do mundo poder entrar em vosso ministério, de modo que essa vossa
mísera angústia já se tomou provérbio: o que entre os alemães mereceu a forca e
ser atirado aos corvos entre os boêmios é um digno sacerdote. Assim a Boêmia
teve que ficar repleta de pastores eminentemente celerados e, simultaneamente,
indoutos, ou antes, de lobos vorazes. Entrementes, que interessou à Santa Sé
romana a maneira pela qual os boêmios estavam sendo destruídos? Ela fez uma
obra perfeitamente digna dela; aceitando dinheiro, vendeu a essas pestes e
béstias a liberdade e a licença de assaltar vossas almas. Embora vos invejasse
inclusive essas pestes [171], foi vencida pelo amor do dinheiro, tomando-se
misericordiosa a ponto de vender a hereges, seus inimigos, suas ordenações.
Daí procede o caos e a confusão babilônica em vosso
ilustríssimo reino. Por um lado, há a necessidade de ter ministros, e, por
outro, estais impotentes para corrigi-los e, assim, acontece que cada qual
ensina o que quer. Num lugar se prega isso, noutro aquilo. Não são poucos os
que, sob falso título de sacerdotes, enganam o povo. Alguns compram as
paróquias, outros são introduzidos à força. O sucessor estabelece coisas
diferentes que o antecessor. E, porquanto não existe uma forma ou ordem de um
ministério justo, vemos a nobre Boêmia transformada na Babilônia descrita por
Isaías, na qual os sátiros e os morcegos realizam suas danças, e as corujas e
os vampiros respondem[18].
Que admira, pois, que, sob essa confusão, somente surjam facções no povo da
Boêmia, que não haja nenhuma ordem certa para crer e viver de acordo, e que os
ministérios pareçam ser ministérios da perdição?
Por serem tão cruéis e atrozes, essas coisas certamente
devem comover, com toda razão, a que, por consenso unânime, toda a Boêmia seja
fechada para esses monstros. É evidente que, se a desgraça e a necessidade
fossem tão grandes que não há outra maneira de conseguirdes ministros,
aconselharia, tranquilamente, que é melhor não ter ministro nenhum. Seria mais
seguro e salutar que cada pai de família lesse o Evangelho em sua casa e
batizasse (visto que o consenso e o uso de todo o mundo o permite aos leigos)
os que nascem em sua casa e, assim, governassem a si e aos seus de acordo com a
doutrina de Cristo, embora, em toda a vida, não ousem ou não possam receber a
Eucaristia. Pois a Eucaristia não é necessária, se houver perigo para a
salvação. Basta o Evangelho e o Batismo, pois somente a fé justifica e somente
o amor vive bem.
Certamente, se duas, três, dez casas, ou toda a cidade, ou
muitas cidades consentissem entre si e praticassem a fé e o amor por meio do
Evangelho doméstico, embora jamais aparecesse um ministro ordena, tonsurado ou
ungido, ou fosse imposto de outra forma qualquer, que ministrasse a Eucaristia
ou outros [sacramentos], sem dúvida alguma, Cristo estaria no meio deles e os
reconheceria como sua Igreja. Não apenas não condenaria, mas recompensaria
totalmente essa piedosa e cristã abstinência de todos os demais sacramentos
administrados por ímpios e sacrílegos. Pois ele próprio disse: "Uma só
coisa é necessária" [Lc 10.42], a saber, a Palavra de Deus, pela qual o
homem viverá. Pois, se vive na Palavra e tem a Palavra, pode prescindir de
todas as demais coisas, para precaver-se dos dogmas e ministérios dos ímpios. E
de que me vale fruir de todas as demais coisas, mas não possuir a Palavra pela
qual se vive? Mas as ordenações papistas, compradas e intrusas, trabalham para
que na Boêmia não haja a Palavra, mas que permaneçam somente os sacramentos,
isso é, espoliam-vos das coisas necessárias, e por meio das não necessárias
querem dominar-vos.
Por outro lado, o pai de família pode prover os seus do
necessário, através da Palavra e dispensar em humildade evangélica as não
necessárias, enquanto se encontrar nesse cativeiro. Aqui se deve proceder de
acordo com a maneira e a lei dos judeus no cativeiro. Não podendo estar em Jerusalém
[172] e ali oferecer seus sacrifícios, viviam entre os inimigos somente pela fé
preservada pela Palavra de Deus e suspiravam por Jerusalém. Assim, também meu
pai de família agiria de modo corretíssimo e absolutamente seguro sob essa
tirania do papa, se suspirasse pela Eucaristia que não ousa ou não pode
receber. Nesse meio tempo, transmita com zelo e fidelidade a fé em sua casa
através da Palavra de Deus, até que Deus se comisere do alto e dissolva esse
cativeiro, ou conceda um ministro da Palavra idôneo. Digo, pois, que é melhor
não ter nenhum do que um ministro sacrílego, ímpio e celerado, e que vem como
ladrão e assaltante, somente para matar e destruir[19].
Agora, porém, louvor e graças a Deus, essa desgraça não
existe absolutamente, a não ser, talvez, para os que sejam fracos e
escrupulosos. No entanto, aqueles que creem e conhecem a verdade têm todo o
poder e autoridade para derrubar todos os ministros ímpios, e convocar e
instituir somente ministros idôneos e piedosos, sempre que lhes convém. Pois
essa é uma bela invenção do papa, que somente esse homem do pecado[20]
era capaz de excogitar que, através do caráter indelével[21],
toma seus ministros eternos e que daí por diante não podem ser destituídos, qualquer
que seja a culpa. Isso para que possa estabelecer sua tirania e firmar o impune
desejo de pecar, contanto que não seja permitido chamar melhores, e somos
obrigados a tolerar esses celerados. Sobre essa faculdade falaremos logo em
seguida. Agora, depois que advertimos a vós boêmios por meio de vossos próprios
males, para que désseis adeus às ordenações papais, quero ainda acrescentar uma
razão geral, por meio da qual queremos provocar entre vós e o mundo inteiro um
nojo, a fim de que se abstenham dessas execráveis e abomináveis ordenações.
Por enquanto quero concordar com essas ordenações papais,
que sejam ungidos e instituídos exclusivamente pela autoridade do bispo os que
chamam de sacerdotes, sem pedir nem obter o consenso ou o sufrágio do povo, à frente
do qual devem ser colocados. No entanto, visto que são povo de Deus, era de seu
máximo interesse que não lhes fosse imposto ninguém sem seu consentimento, mas
que o bispo deveria aprovar aquele que eles conhecessem e aprovassem como
idôneo. Agora, porém, todos os que são ordenados, são ordenados ao incerto, de
modo que, em geral, ninguém sabe a quem servirá de sacerdote no futuro. Enfim,
a maior parte é ordenada somente para usufruir dos chamados benefícios[22],
apenas para oferecer o sacrifício da missa, sendo afastada totalmente a
possibilidade de o povo conhecer o que o bispo lhes ordena [como sacerdotes].
Estou concordando que quero esquecer, até um momento mais apropriado, essa
horrenda monstruosidade das ordenações papísticas.
Diante disso, com razão, toda pessoa que ama a Cristo deve
ficar apavorada e antes sofrer qualquer coisa do que deixar-se ordenar pelos
papistas, porque nessas ordenações tudo é feito e realizado com a máxima e mais
ímpia perversidade, de maneira que, se não fossem acometidos de cegueira e
demência, poderia parecer que estavam querendo, a todo custo, zombar da cara de
Deus. [173] Essa ordenação foi instituída primeiro pela autoridade das
Escrituras, depois, pelo exemplo e os decretos dos apóstolos, a fim de prover o
povo com ministros da Palavra. Refiro-me ao ministério público da Palavra,
através do qual são ministrados os mistérios de Deus.
Por isso esse ministério deve ser instituído pela sagrada
ordenação como o supremo e máximo de tudo que existe na Igreja, no qual
consiste todo o poder do estado eclesiástico, porque na Igreja nada subsiste
sem a Palavra, e tudo subsiste exclusivamente pela Palavra. Meus papistas,
porém, sequer sonham desse ministério em suas ordenações. Que fazem afinal?
Em primeiro lugar, todos foram acometidos de cegueira, de
modo que desconhecem o que vem a ser a Palavra ou o ministério da Palavra,
sobretudo, os próprios bispos que oficiam as ordenações. Portanto, como
poderiam instituir ministros da Palavra com suas ordenações? Depois, em lugar
de ministros da Palavra, ordenam apenas sacrificadores que oferecem o
sacrifício da missa e ouvem as confissões. Pois é isso que o bispo quer
expressar quando põe nas mãos deles o cálice e lhes confere o poder de
consagrá-lo e de sacrificar por vivos e mortos, quer dizer, gloriam-se de um
poder que nem os anjos e nem a virgem mãe de Deus possuem, enquanto eles
próprios são mais imundos que os fornicadores e ladrões. Também quando -
sacrossanto mistério! - assopram o Espírito nos ouvidos e fazendo deles confessores,
dizendo: “Recebei o Espírito Santo”. Esse é o tão glorioso poder de consagrar e
absolver.
Podes dizer que estou exagerando ou mentindo, se encontrares
um ordenado por essas ordenações que ouse dizer que na ordenação recebeu a
ordem de ministrar os mistérios de Cristo, ensinar o Evangelho e governar a
Igreja que Deus adquiriu com seu sangue[23].
Absolutamente ninguém jamais ouve isso, nem acredita que isso lhe diz respeito,
mas recebe o cálice e acha que isso é tudo para que é ordenado: que possa
consagrar e sacrificar a Cristo na missa, e ouvir a confissão. Mais nada.
Apenas está interessado em conseguir o “título de uma prebenda", para
alimentar o ventre, não visando absolutamente nada mais do que o sacrifício das
missas. Com isso está cumprida toda a ordenação. O que faz isso, esse e um
sacerdote ordenado pela Igreja, e ninguém mais tem esse poder. Isso o atesta a
unção com os dedos e a tonsura na cabeça.
De resto, para o ministério da Palavra, ainda se requer
deles mais outra vocação nova, a de pároco ou magistrado, considerada tão
incomparavelmente inferior à concessão da sagrada ordenação e do caráter
[indelével], que ela deve ser comissionada não aos pastores e bispos, essas
cabeças sublimes, mas somente aos ínfimos, aos mais vis, aos piores e mais
indoutos, como sendo de longe a coisa mais vil e menos importante de todas.
Porque ministrar os mistérios de Deus e pastorear as almas é um ofício que
dispensa totalmente o caráter indelével e não é sacramento da ordenação, Mas
consagrar e sacrificar a Cristo, para isso se precisa do caráter [indelével],
isso é o verdadeiro sacramento da ordenação.
Depois dessa, a ira de Deus põe essas ridículas máscaras dos
bispos na roda, a ponto de não [174] desdenharem apenas o ministério da
Palavra, em cujo lugar ordenam o serviço do sacrifício, mas também, mandarem
para longe de si o Batismo vivificante, por meio do qual são santificados os
viventes e as almas racionais para a vida eterna, como ofício totalmente
indigno e estranho a suas mitras encrustadas de pedras preciosas e seus pálios
dourados. No entanto, lhes assenta bem batizar, em lugar de almas vivas,
lápides, altares e sinos, objetos mortos e inanimados, tão receptivos ao
Batismo como eles próprios são receptivos à verdade. Isso é uma loucura e
demência tão grande que quase se teria que morrer de rir se fôssemos assistir a
um bispo brincando dessa forma, não considerando a seriedade do momento. Se, porém,
considerares no Espírito as blasfêmias, serias capaz de explodir de indignação.
Portanto, se é que se deve negar a alguém o título de
sacerdote, é preciso negá-lo, em primeiro lugar, a esses ungidos pelas
ordenações papísticas. Pois do que dissemos acima se evidencia suficientemente
que eles, de modo algum, agem no sentido de ordenar ministros da Palavra, mas
apenas sacrificadores de missas e ouvidores de confissões. Afinal, não podem
agir diferente do que se propuseram a fazer de coração, isso é, não estão
interessados no ministério da doutrina, mas em conferir o poder de sacrificar e
ouvir [a confissão] dos pecados. O resultado não pode ser outro. Como é
absolutamente certo que a missa não é sacrifício e que também a confissão, que
querem que seja compulsória, nada é, visto que ambas não passam de invenção e
mentira humana e sacrílega, segue claramente que, por meio dessas ordenações
sagradas, ninguém se toma sacerdote ou ministro perante Deus, mas mera máscara
de falsidade e frivolidade, de modo que oferecem sacrifício onde não há sacrifício,
e absolvem onde ninguém deve ser acusado, como aquele que ria e gesticulava num
teatro vazio.
Esses são os pontos que, com razão, devem mover não somente
a vós boêmios, mas todos os corações crentes a sofrerem qualquer outra coisa do
que serem desonrados com essas ordenações sacrílegas. E também aqueles que até
hoje foram ordenados dessa forma, devem lamentar por terem sido iludidos pelas
máscaras da falsidade. Pois se alguma vez consagraram e exerceram o ofício do
ministro eclesiástico, isso certamente não aconteceu em virtude de sua sagrada
ordenação, que é mera mentira e zombaria de Deus, mas em virtude da fé e do
Espírito da Igreja que os tolerou e foi obrigada a admiti-los em lugar desse
ministério. Agora, porém, que a questão se toma manifesta, não podemos
continuar a brincar e zombar de Deus. É preciso fugir dessas máscaras enganosas
como das mais nojentas pestes das almas e das mais torpes ignomínias da Igreja
de Deus.
Aquele, porém, que entrou no ministério através dessas
ilusões, que vá em frente e assuma o ministério e o exercite doravante de modo
puro e digno, abandone o serviço do sacrifício, ensinando a Palavra de Deus e
governando a Igreja; no mais, condene e deteste de coração a unção e toda a
ordenação, através da qual entrou [no ministério]. E nem é necessário abandonar
o lugar onde exerce o ministério, embora tenha chegado a ele por vias ímpias e
perversas, desde que corrija a mente e essa mesma maneira [pela qual chegou ao
ministério] seja condenada.
[175] Além disso, se esses sacerdotes fingidos e bispos
mascarados, com suas ordenações e sacrifícios, ou por brincadeira ou com
intenções sérias, nada fazem que seja diametralmente oposto ao Evangelho e,
pelo menos, Cristo nos seja deixado intacto em seu reino, talvez, sua
estultícia seria repreendida com mais amenidade e sua temeridade poderia ser
tolerada. Agora, porém, seu furor e sua abominável demência é tal que Cristo é
necessariamente negado e totalmente rejeitado, se permanecerem seus sacrifícios
e ofícios. Mostrei isso com abundância em outras ocasiões, mas não faz mal
repeti-lo aqui um pouco.
O Evangelho e toda a Escritura apresentam a Cristo como o
“sumo sacerdote que, uma vez por todas, pela única oblação de si mesmo, tirou
os pecados de todos e consumou sua santificação em eternidade. Pois entrou uma
vez no santuário por seu próprio sangue, adquirindo eterna redenção” [Hb
9.12,28;10.12,14]. De sorte que doravante não nos ficou nenhum outro sacrifício
pelos pecados além desse um. Confiados nele de fé pura, sem méritos e obras
nossas, somos salvos dos pecados. Desse sacrifício e de sua oblação estabeleceu
uma memória perpétua, porquanto quis que esse sacrifício fosse anunciado no
altar sob a Eucaristia e que a fé nele fosse alimentada. Que, porém, fazem aqui
as ordenações papísticas em suas abominações?
Como se esse sacrifício único não fosse suficiente, e como se
não tivesse adquirido uma vez por todas a eterna redenção, eles sacrificam
diariamente o corpo e o sangue em inumeráveis lugares espalhados pelo mundo. E
com esse seu sacrifício prometem remissão dos pecados, não a eterna, mas uma
que deve ser repetida todos os dias. Essa abominação vai além de todo o
entendimento. Pois, que significa isso senão gloriar o sacrifício de Cristo
apenas pelo nome, mas de fato negar e aboli-lo totalmente. Pois como poderia
eu, ao mesmo tempo, pela fé no fato de Cristo ter sido sacrificado uma única
vez, possuir a eterna remissão e, não obstante, procurar remissão sobre
remissão por meio de um sacrifício repetido todos os dias? Pois se creio que
meus pecados estão perdoados perpetuamente pelo Cristo sacrificado por mim uma
vez por todas, não posso procurar novamente remissão por meio de outro
sacrifício. Se, porém, procuro remissão pelo sacrifício diário, é preciso que
pereça a fé que crê que todos os meus pecados foram tirados em eternidade por
Cristo sacrificado uma única vez.
Aqui vedes com que horrível perversidade, sob o nome de
Cristo, esses sacrificadores nos privaram totalmente de Cristo com todo seu
reino e, em seu lugar, estabeleceram sua própria obra, seu sacrifício, sua
invenção, como Cristo predisse que a abominação se instalaria no lugar santo[24].
Aqui se verifica a Palavra de Cristo: “Muitos virão em meu nome, dizendo: Eu
sou o Cristo” [Mt 24.5]. Acaso não são Cristo esses que, por meio de seu
sacrifício cotidiano, repetido em tantos milhares de lugares, oferecem o que
Cristo realizou sozinho, uma vez, por meio de seu sacrifício único? Não
significa isso tirar a fé da rocha da verdade, que existe em Cristo, e
construir sobre a areia da mentira humana?
Vemos, portanto, que tipo de sacerdote resulta das
ordenações papísticas. Na verdade, não são sacerdotes de Deus, mas sacerdotes
de satanás, que calcam Cristo aos pés, [176] abolem seu sacrifício, vendem a si
mesmos sob o nome dele e ensinam a crer em seus próprios sacrifícios. Portanto,
já não é mais a questão se se deve solicitar e receber as ordens sagradas dos
papistas, mas é questão fechada que, em parte alguma, se conferem as ordens
sagradas ou se fazem sacerdotes menos do que sob o reino do papa. Aqui se
apresenta de modo magnífico uma aparência de ordenação e criação de sacerdotes,
mas ao rei das aparências nada mais compete do que oferecer aparências para,
por meio delas, fortalecer suas abominações. Por isso a consciência da fé nos
obriga a que, sob anátema divino, nos abstenhamos de nos deixarmos ordenar por
eles. Por causa de nossa salvação, somos claramente compelidos a nos abstermos
das execráveis e malditas ordenações deles. Ai daqueles que, cientes e
sabedores, se dedicam a esse adversário de Deus e Baal-Peor[25].
Essa razão deveria comover a vós boêmios mais do que
qualquer outra nação, pois não é apenas ímpio para vós perante Deus, como o é
para os outros, mas também é torpe perante os homens terem que pedir as
ordenações, como também recebê-las de vosso inimigo, que queimou a Hus e
Jerônimo de Praga[26]
com muitos outros, com a pior reputação, o mesmo que sempre vos quis ver
extintos, que vos conspurca sem fim e de todas as maneiras, taxando-vos de heréticos
e a cujos propósitos pestilentos resististes com tanto sangue. Não obstante,
esse tirano sanguinário ainda não se arrepende de suas infâmias, não revoga o
sangue inocentemente condenado, nem restitui o espólio sacrílego do nome de
cristão, nem deplora ter derramado inutilmente tanto sangue alemão contra vós,
com prejuízo para as almas, por causa de sua tirania sacrílega. Sua fronte e
cerviz continuam endurecidas a tal ponto que, ainda hoje, gostaria de ver
destruídos a vós e a nós de uma só vez, para que assim não sobrasse sequer uma
faísca que brilhasse um pouquinho por Cristo.
Até hoje mantém sob sua excomunhão fútil e nula o rei Jorge[27]
com sua família de Münsterberg, o glorioso ducado boêmio e, da mesma maneira,
muitos outros. Mas é bom que seja revelado o homem do pecado, do qual Pedro
profetizou[28]
que irá amaldiçoar reis e príncipes, sem nenhum temor. Nós, porém, ainda temos
outro bispo que pode transformar essa sua maldição em bênção, como está
escrito: Eles amaldiçoam, tu, porém, bendizes” [Sl 109.28]. De modo que a
maldição do papa [177] lançada contra o rei Jorge, o ducado de Münsterberg e
qualquer que sofreu a mesma coisa, sempre foi e ainda é como aquela da qual
Salomão diz em Pv 26[.2]: “Como o pássaro que voa pelo alto, assim a maldição
proferida sem causa não sobrevém”. Muito antes, até hoje, isso continua sendo
eternamente exímia glória perante Deus para o rei Jorge e sua casa, acima dos
demais reis e príncipes da terra, o fato de ter sido amaldiçoado pela
maldizente Sé e pelo filho da maldição.
Quereis vós boêmios, sem motivo, continuar recebendo as
sacrílegas e execráveis ordenações das mãos de vosso inimigo tão cruel,
cruento, maldizente, implacável, abominável a Deus e aos homens, e continuar a
ter qualquer relação com ele? Pois, fazendo isso, não consentis de fato com
aquele que vos condena e não lhe estais dando razão? Não estais transformando o
santo sangue de João Hus, derramado inocentemente, em sangue ímpio, confessando
que foi derramado merecidamente ao beijardes as mãos que o derramaram, ao
cairdes aos pés daquele que vos calca aos pés e tortura com infâmia eterna?
Quanto mais justo seria se vos separásseis tanto dele que, se possível, não
sentisses sequer o cheiro pestilento de seu nome. Se Paulo ordenou evitar o
fornicador e o ébrio[29],
quanto mais é dever de todos os que confessam a Cristo evitar essa derradeira e
incorrigível abominação devastadora de tudo.
Permiti-me, por isso, prezados senhores, conseguir de vós
primeiramente, sim, a própria consciência e o temor de Deus deve compelir-vos
contra toda resistência, que doravante nem soliciteis, nem aceiteis ordenações
desse filho da perdição, ainda que ele o ofereça. Muito menos ainda deveis
aceitar alguém ordenado por ele, que se apresenta ostentando o nome e a marca
da besta[30].
Pois se não conseguirmos isso previamente, estamos trabalhando em vão e estamos
procurando debalde caminhos como ajudar-vos. Então também vosso afamado
dissenso, sim, vossa feliz separação do reino de satanás seria somente
aparência e disfarce. Pois que sentido faz gloriar-se de ter-se livrado do jugo
do papa e, não obstante, não admitir outros guias das consciências do que os
carrascos e ladrões do tirano, ao qual se abjurou? Não dirá o mundo inteiro que
tudo que conquistastes com tanto sangue, tantos perigos tanta ignomínia para
vosso nome de cristãos, e por terdes suportado eternamente o nome de hereges,
serviu apenas para vos desvencilhardes da tirania do papa de nome mas que, de
fato, duplicastes a tirania dele sobre vós? Em situação mais feliz, nós
estultos alemães sofremos apenas sua tirania simples, sem o título da
obediência recusada, visto que sofremos, de fato, o que o nome designa, para
não nos consolarmos com falsa glória de nossa miséria, isso é, proporcionar uma
satisfação especial ao execrável tirano com nosso próprio escárnio.
“Mas como proceder”, dirá alguém, “pois a necessidade não se
preocupa com essas coisas. Não temos sacerdotes e não podemos ficar sem eles.”
Se for assim, se deveria ter pensado nisso, dito e observado isso [178] antes
de romper com o papa, ou então, certamente seria preferível, ainda agora,
retomar o mais depressa possível à condição da servidão abandonada do que,
depois de perdida a liberdade de modo tão infeliz, gozar apenas o reclamado
título de uma liberdade e ser alimentado com vento, sob um cativeiro duplamente
duro. Resta-nos, portanto, enfrentar a situação e aprender a providenciar para
nós mesmos presbíteros, fora da tirania do papa, ou então, se não quisermos
isso (embora o possamos), submeter-nos resignados e de bom grado ao cativeiro e
servir de modo consciente e prudente à escravatura da perdição sob o rei da
perdição, o que Cristo, nosso misericordioso Senhor e Mestre, queira impedir.
Amém.
[1]
De instituendis ministris ecclesiae ad senatum Pragensem Bohemiae. - WA
12,169-196. Tradução do original latino: Ilson Kayser, com a colaboração de
Egbertus Ossewaarde.
[2]
Calixtinos ou utraquistas são defensores da forma de comunhão sob duas
espécies, isto é, que permite também ao leigo tomar o cálice. As expressões
originaram-se do latim calix (cálice) e sub utraque forma
(sob duas formas). Os calixtinos ou utraquistas
constituíram a ala moderada do movimento hussita. Sobre João Hus, cf. abaixo,
p. 90, n. 26.
[3]
Cf. WA 12,160-163.
[4]
V., abaixo, p.
87,9-37;88,15;89,21-90,18;91,17-92,10;96,5-8;100,16;101,22s.;108,31-109,11.
[5]
V. abaixo, p. 87,18-28;88,12-25.
[6]
V. abaixo, p. 93,16-95,14.
[7]
V. abaixo, p. 95,15-96,31;97,17-29;98,21-100,6;100,24-34;101,26-102,9; 103,5-9;
103,22-104,11; 104,15-36; 105,26-37. Nas p. 92,33-105,12, abaixo, encontra-se a
maior e mais extensa explanação a respeito do sacerdócio dos crentes. De resto,
chama atenção a grande proximidade entre o presente escrito e “Direito e
Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina,
Chamar, Nomear e Demitir Pregadores - Fundamento e Razão da Escritura”, v.
acima, p. 28-36.
[8]
V. abaixo, p. 105,1-12;106,26-35;107,9-31;108,20-30;110,9-14.
[9]
V. abaixo, p. 109,28-110,31.
[10]
V. abaixo, p. 96,39;97,34; 109,4; 111,10-25; 112,11 -113,2.
[11]
Galo Cahera foi, segundo o próprio Lutero, responsável por ele ter escrito
“Como Instituir Ministros na Igreja” (cf. WA 12,161). Foi eleito administrador
dos utraquistas em Praga, depois de sua volta para Wittenberg. Fracassou, no
entanto, na tentativa de abolir o celibato e, para permanecer no cargo,
afastou-se novamente de Lutero, retomando para a Igreja romana. Cf. WA 12 162s
[12]
V. abaixo, p. 111,26-113,2.
[13]
Paulo Speratus (1484-1551), foi pastor em Königsberg, depois, bispo na Prússia
Oriental, companheiro de Lutero, muito perseguido. Tomou-se conhecido também
como compositor de hinos. Cf. Hinos do Povo de Deus, nº 156 e Hinário Luterano,
nº 373.
[14]
WA 12,166-168.
[15]
WA 12,164s.
[16]
Lutero constrói um neologismo, combinando sacramentum com exsecratio.
[17]
Cf. Jo 10.1s.
[18]
Cf. Is 13.21-22.
[19]
Cf. Jo 10.10
[20]
Cf. 2Ts 2.3.
[21]
Segundo a doutrina da Igreja romana, a ordenação imprime ao sacerdote ordenado
um caráter indelével, que o acompanha para todo sempre.
[22]
Com benefício” se designa a prebenda que o sacerdote ou bispo passava a
usufruir e da qual tirava seu sustento.
[23]
Cf. At 20.28.
[24]
Cf. Mt 24.15.
[25]
Cf. Nm 25.3s.
[26]
João Hus, (1373[?]-1415), pré-reformador tcheco, discípulo de Wyclif. Antecipou
alguns princípios reformatórios de Lutero: atacou a corrupção do clero,
denunciou o comércio de indulgências, declarou a Bíblia única norma de
doutrina, ensinou que a Igreja é a comunhão de todos os crentes e que Cristo, e
não o papa, e o cabeça da Igreja. Preservou a transubstanciação na Eucaristia e
a invocação de santos. Como discípulo do teólogo inglês João Wyclif (ca.
1328-1384), foi o grande propagador do wyclifismo boêmio. Excomungado, apelou
para um concílio. Recebeu salvo-conduto para ir ao Concílio de Constança
(1414-1418 - o 16º concílio ecumênico), que o condenou como herege, sendo
lançado à fogueira ainda no mesmo dia — 6 de julho de 1415, morrendo de pé,
rezando por seus inimigos e invocando a Cristo e Maria - Jerônimo de Praga,
igualmente discípulo de Wyclif, desde 1407 porta-voz do wyclifismo boêmio ao
lado de João Hus. Também foi condenado como herege pelo Concilio de Constança e
queimado vivo em 30 de maio de 1416. Devido à execução de Hus e Jerônimo,
eclodiram as guerras hussitas (1419-1436). Cf. a opinião de Lutero sobre a
questão dos boêmios: OSel 2,325ss.
[27]
Jorge Podiebard foi excomungado pelo papa Pio II em 26 de junho de 1464, e
destituído da coroa pelo papa Paulo II, em 23 de dezembro de 1466; seus
descendentes foram declarados imprestáveis para qualquer dignidade e herança.
Acusação principal: celebração da Santa Ceia sob ambas as espécies, na qual os
boêmios insistiam. Em 29 de junho de 1522, um neto seu, duque Carlos von
Münsterberg, havia escrito a Lutero, queixando-se de sua condição de
excomungado que ainda pesava sobre sua família.
[28]
Cf. 2Pe 2.10.
[29]
Cf. Rm 13.12,13; Ef 5.3,18.
[30]
Cf. Ap 19.20.
Obras Selecionadas de
Lutero, v. 7, pp 25 a 36
Este livro completo e todos os outros da coleção, podem ser comprados na Editora Concórdia (https://www.editoraconcordia.com.br)
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