terça-feira, 10 de setembro de 2019

Ministério - Como Instituir Ministros na Igreja

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Como Instituir Ministros na Igreja[1]


1523

Introdução

O motivo deste escrito é a vacância do arcebispado de Praga. Roma deixou de provê-lo por considerar heréticos os calixtinos ou utraquistas[2], embora o Concílio de Basiléia (1431-1449) os tenha declarado ortodoxos. Por isso foi preciso que os futuros sacerdotes fossem ordenados na Itália, conforme o rito romano, quer dizer, autorizados a administrar a missa ao povo apenas sob uma espécie. O que os ordenados não podiam observar quando voltaram. Assim começaram a sua atuação como perjuros o que se tomou insustentável. Aí representantes da Boêmia, adeptos da Reforma, liderados pelo utraquista Galo Cahera, dirigiram consulta a Martinho Lutero sobre como sair dessa situação constrangedora[3]. Ele reage, insistindo com os boêmios que não deixassem mais consagrar ninguém como vinham fazendo; o que, aliás, estaria em perfeita concordância com a resistência, já histórica do povo tcheco, contra o papado. Pois Roma ordenaria “sacrificadores” em vez de “servos da Palavra de Deus”[4]. Teria ideia totalmente errada do sacerdócio, razão pela qual sua ordenação seria sacrílega[5]. Não veria que todos os crentes e batizados são sacerdotes[6] e que todos os encargos que Roma confere aos seus consagrados pertencem à comunidade inteira[7]. Agora, para exercer tais encargos é preciso que se encarreguem deles determinadas pessoas[8]. Por conseguinte, Lutero aconselha que se aja como outrora o fizeram os apóstolos, levando os seus problemas a Deus e depois, elegendo aqueles que são considerados os mais dignos e capazes[9]. A “majestade da Palavra de Deus”[10] se sobrepõe à tradição eclesiástica e autoriza e anima a Igreja a reorganizar o ministério em situações novas e concretas. Tudo, no entanto, sem coação. Caso os boêmios achassem esse conselho pesado demais para a sua fé, poderiam eleger como bispo um sacerdote consagrado segundo o rito de Roma, talvez Galo[11]. Lutero conclui, enfatizando que haverá resistência na Igreja e fora dela contra o procedimento recomendado, o que, para ele, prova justamente que o empreendimento é “santo e agradável a Deus”[12].
Sob a orientação do autor, Paulo Speratus[13] traduziu “Como instituir Ministros na Igreja para o alemão. A sua tradução saiu no início de 1524 e alcançou ampla divulgação. Para tal ajudou a introdução inspirada que Speratus lhe antepôs[14]. Inclusive, no mesmo ano, saíram mais três versões alemãs, todavia de qualidade inferior[15].
A. Baeske

AO ILUSTRÍSSIMO SENADO e ao povo praguense, Martinho Lutero, pregador em Wittenberg

Graça e paz de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
Muitas vezes, e por meio de cartas de muitas pessoas, fui solicitado a vos escrever, ilustríssimos senhores, a respeito da maneira como convocar e instituir um pastor da Igreja. Por fim, pressionado pela própria lei da caridade, não pude mais negar-me. Sei que isso vai além de minhas forças e tenho mais serviço em casa do que posso atender sozinho. Contudo, vossa causa o reclama e a necessidade o exige, de modo que nada há que o amor não ouse, certo de que tudo pode, contanto que o faça aquele que o fortalece. Portanto, o que tenho vos dou, todavia de tal maneira 5 que [o assunto] fique inteiramente no livre juízo de vós e de cada um. Pois meu ministério não me permite ir além do que a autoridade alheia de mim exige. Além disso, não posso empreender qualquer coisa a não ser através de meu conselho e exortação. O Senhor, porém, que iniciou em vós o desejo de exigir e procurar essas coisas, cumprirá e satisfará vosso esforço e desejo plena e copiosamente, para louvor de sua graça e de seu Evangelho, ao qual seja a glória por todos os séculos dos séculos.

Advertência

Antes de mais nada confesso abertamente que, se alguém espera de mim que irei ensinar ou modificar o rito ou o costume preservado até hoje de tonsurar e ungir os sacerdotes, nada do que me proponho a dizer no presente libelo lhe diz respeito. Deixo que eles usufruam de sua prática religiosa ou crença, por mais comum, tradicional e propalada que seja. A nós interessa a pura e verdadeira maneira prescrita nas Divinas Escrituras, pouco preocupados com o que o uso ou os pais nos legaram ou praticaram nessa matéria. Como já ensinamos suficientemente em outra ocasião, não devemos, de forma alguma, nem nos convém, nem queremos submeter-nos às tradições humanas, por mais sagradas e célebres que sejam, mas queremos estar totalmente acima delas, conforme nosso arbítrio e liberdade cristã, conforme está escrito: “Tudo é vosso, seja Pedro ou Paulo, mas vós sois de Cristo” [1 Co 3.22s.].

[170] Uma exortação a que não se aceitem ordenações papistas

Antes, porém, de chegarmos a nossa instituição, à instituição cristã, é digno e justo analisar primeiro as ordenações (como as chamam) papais e trazer à luz publicamente o “execramento”[16] da ordenação deles, “para que sua iniquidade seja revelada e odiada” [Sl 36.2] e aqueles que ainda aderem a ela, tenazmente, sejam persuadidos com mais facilidade a se absterem dela. E, para começar com as coisas mais fáceis, queremos ocupar-nos, primeiramente, com as razões pelas quais vós boêmios estais sendo mais onerados do que outros povos.
Depois que satanás prevaleceu e os bispos e sacerdotes (como são chamados) abandonaram o reino da Boêmia e o deixaram devastado e abandonado, fostes forçados pelo poder dos bispos romanos, por miserável e dura necessidade, a enviar anualmente vossos clérigos à Itália, a fim de comprarem a ordenação papística, visto que os bispos da vizinhança, de forma alguma, queriam dignar-se a ordená-los, porque vos consideravam obstinados hereges. Quantos incômodos e perigos vos trouxe essa necessidade! Sem falar no que são obrigados a sofrer em corpo e recursos, no grande desgaste da viagem e nos custos entre estranhos, nas fadigas entre inimigos. Com quantas doenças, péssimos costumes e consciências arruinadas retomam eles para vos governarem! O mais lamentável em tudo isso, porém, é que sois obrigados a comprar essas ordenações de vosso tirano e seus carrascos, os bispos, sob condições repugnantes e desonestas, violentando a consciência, de maneira que jamais alguém poderá gloriar-se de ter entrado no vosso aprisco de ovelhas pela porta[17]. O mais duro, porém, é ter que sofrer sempre e somente esses pastores que entraram por outro lugar, menos pela porta.
Por esse motivo surgiu, por fim, a extremamente cruel ocasião para qualquer tratante, apóstata e os que não foram tolerados em nenhuma parte do mundo poder entrar em vosso ministério, de modo que essa vossa mísera angústia já se tomou provérbio: o que entre os alemães mereceu a forca e ser atirado aos corvos entre os boêmios é um digno sacerdote. Assim a Boêmia teve que ficar repleta de pastores eminentemente celerados e, simultaneamente, indoutos, ou antes, de lobos vorazes. Entrementes, que interessou à Santa Sé romana a maneira pela qual os boêmios estavam sendo destruídos? Ela fez uma obra perfeitamente digna dela; aceitando dinheiro, vendeu a essas pestes e béstias a liberdade e a licença de assaltar vossas almas. Embora vos invejasse inclusive essas pestes [171], foi vencida pelo amor do dinheiro, tomando-se misericordiosa a ponto de vender a hereges, seus inimigos, suas ordenações.
Daí procede o caos e a confusão babilônica em vosso ilustríssimo reino. Por um lado, há a necessidade de ter ministros, e, por outro, estais impotentes para corrigi-los e, assim, acontece que cada qual ensina o que quer. Num lugar se prega isso, noutro aquilo. Não são poucos os que, sob falso título de sacerdotes, enganam o povo. Alguns compram as paróquias, outros são introduzidos à força. O sucessor estabelece coisas diferentes que o antecessor. E, porquanto não existe uma forma ou ordem de um ministério justo, vemos a nobre Boêmia transformada na Babilônia descrita por Isaías, na qual os sátiros e os morcegos realizam suas danças, e as corujas e os vampiros respondem[18]. Que admira, pois, que, sob essa confusão, somente surjam facções no povo da Boêmia, que não haja nenhuma ordem certa para crer e viver de acordo, e que os ministérios pareçam ser ministérios da perdição?
Por serem tão cruéis e atrozes, essas coisas certamente devem comover, com toda razão, a que, por consenso unânime, toda a Boêmia seja fechada para esses monstros. É evidente que, se a desgraça e a necessidade fossem tão grandes que não há outra maneira de conseguirdes ministros, aconselharia, tranquilamente, que é melhor não ter ministro nenhum. Seria mais seguro e salutar que cada pai de família lesse o Evangelho em sua casa e batizasse (visto que o consenso e o uso de todo o mundo o permite aos leigos) os que nascem em sua casa e, assim, governassem a si e aos seus de acordo com a doutrina de Cristo, embora, em toda a vida, não ousem ou não possam receber a Eucaristia. Pois a Eucaristia não é necessária, se houver perigo para a salvação. Basta o Evangelho e o Batismo, pois somente a fé justifica e somente o amor vive bem.
Certamente, se duas, três, dez casas, ou toda a cidade, ou muitas cidades consentissem entre si e praticassem a fé e o amor por meio do Evangelho doméstico, embora jamais aparecesse um ministro ordena, tonsurado ou ungido, ou fosse imposto de outra forma qualquer, que ministrasse a Eucaristia ou outros [sacramentos], sem dúvida alguma, Cristo estaria no meio deles e os reconheceria como sua Igreja. Não apenas não condenaria, mas recompensaria totalmente essa piedosa e cristã abstinência de todos os demais sacramentos administrados por ímpios e sacrílegos. Pois ele próprio disse: "Uma só coisa é necessária" [Lc 10.42], a saber, a Palavra de Deus, pela qual o homem viverá. Pois, se vive na Palavra e tem a Palavra, pode prescindir de todas as demais coisas, para precaver-se dos dogmas e ministérios dos ímpios. E de que me vale fruir de todas as demais coisas, mas não possuir a Palavra pela qual se vive? Mas as ordenações papistas, compradas e intrusas, trabalham para que na Boêmia não haja a Palavra, mas que permaneçam somente os sacramentos, isso é, espoliam-vos das coisas necessárias, e por meio das não necessárias querem dominar-vos.
Por outro lado, o pai de família pode prover os seus do necessário, através da Palavra e dispensar em humildade evangélica as não necessárias, enquanto se encontrar nesse cativeiro. Aqui se deve proceder de acordo com a maneira e a lei dos judeus no cativeiro. Não podendo estar em Jerusalém [172] e ali oferecer seus sacrifícios, viviam entre os inimigos somente pela fé preservada pela Palavra de Deus e suspiravam por Jerusalém. Assim, também meu pai de família agiria de modo corretíssimo e absolutamente seguro sob essa tirania do papa, se suspirasse pela Eucaristia que não ousa ou não pode receber. Nesse meio tempo, transmita com zelo e fidelidade a fé em sua casa através da Palavra de Deus, até que Deus se comisere do alto e dissolva esse cativeiro, ou conceda um ministro da Palavra idôneo. Digo, pois, que é melhor não ter nenhum do que um ministro sacrílego, ímpio e celerado, e que vem como ladrão e assaltante, somente para matar e destruir[19].
Agora, porém, louvor e graças a Deus, essa desgraça não existe absolutamente, a não ser, talvez, para os que sejam fracos e escrupulosos. No entanto, aqueles que creem e conhecem a verdade têm todo o poder e autoridade para derrubar todos os ministros ímpios, e convocar e instituir somente ministros idôneos e piedosos, sempre que lhes convém. Pois essa é uma bela invenção do papa, que somente esse homem do pecado[20] era capaz de excogitar que, através do caráter indelével[21], toma seus ministros eternos e que daí por diante não podem ser destituídos, qualquer que seja a culpa. Isso para que possa estabelecer sua tirania e firmar o impune desejo de pecar, contanto que não seja permitido chamar melhores, e somos obrigados a tolerar esses celerados. Sobre essa faculdade falaremos logo em seguida. Agora, depois que advertimos a vós boêmios por meio de vossos próprios males, para que désseis adeus às ordenações papais, quero ainda acrescentar uma razão geral, por meio da qual queremos provocar entre vós e o mundo inteiro um nojo, a fim de que se abstenham dessas execráveis e abomináveis ordenações.
Por enquanto quero concordar com essas ordenações papais, que sejam ungidos e instituídos exclusivamente pela autoridade do bispo os que chamam de sacerdotes, sem pedir nem obter o consenso ou o sufrágio do povo, à frente do qual devem ser colocados. No entanto, visto que são povo de Deus, era de seu máximo interesse que não lhes fosse imposto ninguém sem seu consentimento, mas que o bispo deveria aprovar aquele que eles conhecessem e aprovassem como idôneo. Agora, porém, todos os que são ordenados, são ordenados ao incerto, de modo que, em geral, ninguém sabe a quem servirá de sacerdote no futuro. Enfim, a maior parte é ordenada somente para usufruir dos chamados benefícios[22], apenas para oferecer o sacrifício da missa, sendo afastada totalmente a possibilidade de o povo conhecer o que o bispo lhes ordena [como sacerdotes]. Estou concordando que quero esquecer, até um momento mais apropriado, essa horrenda monstruosidade das ordenações papísticas.
Diante disso, com razão, toda pessoa que ama a Cristo deve ficar apavorada e antes sofrer qualquer coisa do que deixar-se ordenar pelos papistas, porque nessas ordenações tudo é feito e realizado com a máxima e mais ímpia perversidade, de maneira que, se não fossem acometidos de cegueira e demência, poderia parecer que estavam querendo, a todo custo, zombar da cara de Deus. [173] Essa ordenação foi instituída primeiro pela autoridade das Escrituras, depois, pelo exemplo e os decretos dos apóstolos, a fim de prover o povo com ministros da Palavra. Refiro-me ao ministério público da Palavra, através do qual são ministrados os mistérios de Deus.
Por isso esse ministério deve ser instituído pela sagrada ordenação como o supremo e máximo de tudo que existe na Igreja, no qual consiste todo o poder do estado eclesiástico, porque na Igreja nada subsiste sem a Palavra, e tudo subsiste exclusivamente pela Palavra. Meus papistas, porém, sequer sonham desse ministério em suas ordenações. Que fazem afinal?
Em primeiro lugar, todos foram acometidos de cegueira, de modo que desconhecem o que vem a ser a Palavra ou o ministério da Palavra, sobretudo, os próprios bispos que oficiam as ordenações. Portanto, como poderiam instituir ministros da Palavra com suas ordenações? Depois, em lugar de ministros da Palavra, ordenam apenas sacrificadores que oferecem o sacrifício da missa e ouvem as confissões. Pois é isso que o bispo quer expressar quando põe nas mãos deles o cálice e lhes confere o poder de consagrá-lo e de sacrificar por vivos e mortos, quer dizer, gloriam-se de um poder que nem os anjos e nem a virgem mãe de Deus possuem, enquanto eles próprios são mais imundos que os fornicadores e ladrões. Também quando - sacrossanto mistério! - assopram o Espírito nos ouvidos e fazendo deles confessores, dizendo: “Recebei o Espírito Santo”. Esse é o tão glorioso poder de consagrar e absolver.
Podes dizer que estou exagerando ou mentindo, se encontrares um ordenado por essas ordenações que ouse dizer que na ordenação recebeu a ordem de ministrar os mistérios de Cristo, ensinar o Evangelho e governar a Igreja que Deus adquiriu com seu sangue[23]. Absolutamente ninguém jamais ouve isso, nem acredita que isso lhe diz respeito, mas recebe o cálice e acha que isso é tudo para que é ordenado: que possa consagrar e sacrificar a Cristo na missa, e ouvir a confissão. Mais nada. Apenas está interessado em conseguir o “título de uma prebenda", para alimentar o ventre, não visando absolutamente nada mais do que o sacrifício das missas. Com isso está cumprida toda a ordenação. O que faz isso, esse e um sacerdote ordenado pela Igreja, e ninguém mais tem esse poder. Isso o atesta a unção com os dedos e a tonsura na cabeça.
De resto, para o ministério da Palavra, ainda se requer deles mais outra vocação nova, a de pároco ou magistrado, considerada tão incomparavelmente inferior à concessão da sagrada ordenação e do caráter [indelével], que ela deve ser comissionada não aos pastores e bispos, essas cabeças sublimes, mas somente aos ínfimos, aos mais vis, aos piores e mais indoutos, como sendo de longe a coisa mais vil e menos importante de todas. Porque ministrar os mistérios de Deus e pastorear as almas é um ofício que dispensa totalmente o caráter indelével e não é sacramento da ordenação, Mas consagrar e sacrificar a Cristo, para isso se precisa do caráter [indelével], isso é o verdadeiro sacramento da ordenação.
Depois dessa, a ira de Deus põe essas ridículas máscaras dos bispos na roda, a ponto de não [174] desdenharem apenas o ministério da Palavra, em cujo lugar ordenam o serviço do sacrifício, mas também, mandarem para longe de si o Batismo vivificante, por meio do qual são santificados os viventes e as almas racionais para a vida eterna, como ofício totalmente indigno e estranho a suas mitras encrustadas de pedras preciosas e seus pálios dourados. No entanto, lhes assenta bem batizar, em lugar de almas vivas, lápides, altares e sinos, objetos mortos e inanimados, tão receptivos ao Batismo como eles próprios são receptivos à verdade. Isso é uma loucura e demência tão grande que quase se teria que morrer de rir se fôssemos assistir a um bispo brincando dessa forma, não considerando a seriedade do momento. Se, porém, considerares no Espírito as blasfêmias, serias capaz de explodir de indignação.
Portanto, se é que se deve negar a alguém o título de sacerdote, é preciso negá-lo, em primeiro lugar, a esses ungidos pelas ordenações papísticas. Pois do que dissemos acima se evidencia suficientemente que eles, de modo algum, agem no sentido de ordenar ministros da Palavra, mas apenas sacrificadores de missas e ouvidores de confissões. Afinal, não podem agir diferente do que se propuseram a fazer de coração, isso é, não estão interessados no ministério da doutrina, mas em conferir o poder de sacrificar e ouvir [a confissão] dos pecados. O resultado não pode ser outro. Como é absolutamente certo que a missa não é sacrifício e que também a confissão, que querem que seja compulsória, nada é, visto que ambas não passam de invenção e mentira humana e sacrílega, segue claramente que, por meio dessas ordenações sagradas, ninguém se toma sacerdote ou ministro perante Deus, mas mera máscara de falsidade e frivolidade, de modo que oferecem sacrifício onde não há sacrifício, e absolvem onde ninguém deve ser acusado, como aquele que ria e gesticulava num teatro vazio.
Esses são os pontos que, com razão, devem mover não somente a vós boêmios, mas todos os corações crentes a sofrerem qualquer outra coisa do que serem desonrados com essas ordenações sacrílegas. E também aqueles que até hoje foram ordenados dessa forma, devem lamentar por terem sido iludidos pelas máscaras da falsidade. Pois se alguma vez consagraram e exerceram o ofício do ministro eclesiástico, isso certamente não aconteceu em virtude de sua sagrada ordenação, que é mera mentira e zombaria de Deus, mas em virtude da fé e do Espírito da Igreja que os tolerou e foi obrigada a admiti-los em lugar desse ministério. Agora, porém, que a questão se toma manifesta, não podemos continuar a brincar e zombar de Deus. É preciso fugir dessas máscaras enganosas como das mais nojentas pestes das almas e das mais torpes ignomínias da Igreja de Deus.
Aquele, porém, que entrou no ministério através dessas ilusões, que vá em frente e assuma o ministério e o exercite doravante de modo puro e digno, abandone o serviço do sacrifício, ensinando a Palavra de Deus e governando a Igreja; no mais, condene e deteste de coração a unção e toda a ordenação, através da qual entrou [no ministério]. E nem é necessário abandonar o lugar onde exerce o ministério, embora tenha chegado a ele por vias ímpias e perversas, desde que corrija a mente e essa mesma maneira [pela qual chegou ao ministério] seja condenada.
[175] Além disso, se esses sacerdotes fingidos e bispos mascarados, com suas ordenações e sacrifícios, ou por brincadeira ou com intenções sérias, nada fazem que seja diametralmente oposto ao Evangelho e, pelo menos, Cristo nos seja deixado intacto em seu reino, talvez, sua estultícia seria repreendida com mais amenidade e sua temeridade poderia ser tolerada. Agora, porém, seu furor e sua abominável demência é tal que Cristo é necessariamente negado e totalmente rejeitado, se permanecerem seus sacrifícios e ofícios. Mostrei isso com abundância em outras ocasiões, mas não faz mal repeti-lo aqui um pouco.
O Evangelho e toda a Escritura apresentam a Cristo como o “sumo sacerdote que, uma vez por todas, pela única oblação de si mesmo, tirou os pecados de todos e consumou sua santificação em eternidade. Pois entrou uma vez no santuário por seu próprio sangue, adquirindo eterna redenção” [Hb 9.12,28;10.12,14]. De sorte que doravante não nos ficou nenhum outro sacrifício pelos pecados além desse um. Confiados nele de fé pura, sem méritos e obras nossas, somos salvos dos pecados. Desse sacrifício e de sua oblação estabeleceu uma memória perpétua, porquanto quis que esse sacrifício fosse anunciado no altar sob a Eucaristia e que a fé nele fosse alimentada. Que, porém, fazem aqui as ordenações papísticas em suas abominações?
Como se esse sacrifício único não fosse suficiente, e como se não tivesse adquirido uma vez por todas a eterna redenção, eles sacrificam diariamente o corpo e o sangue em inumeráveis lugares espalhados pelo mundo. E com esse seu sacrifício prometem remissão dos pecados, não a eterna, mas uma que deve ser repetida todos os dias. Essa abominação vai além de todo o entendimento. Pois, que significa isso senão gloriar o sacrifício de Cristo apenas pelo nome, mas de fato negar e aboli-lo totalmente. Pois como poderia eu, ao mesmo tempo, pela fé no fato de Cristo ter sido sacrificado uma única vez, possuir a eterna remissão e, não obstante, procurar remissão sobre remissão por meio de um sacrifício repetido todos os dias? Pois se creio que meus pecados estão perdoados perpetuamente pelo Cristo sacrificado por mim uma vez por todas, não posso procurar novamente remissão por meio de outro sacrifício. Se, porém, procuro remissão pelo sacrifício diário, é preciso que pereça a fé que crê que todos os meus pecados foram tirados em eternidade por Cristo sacrificado uma única vez.
Aqui vedes com que horrível perversidade, sob o nome de Cristo, esses sacrificadores nos privaram totalmente de Cristo com todo seu reino e, em seu lugar, estabeleceram sua própria obra, seu sacrifício, sua invenção, como Cristo predisse que a abominação se instalaria no lugar santo[24]. Aqui se verifica a Palavra de Cristo: “Muitos virão em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo” [Mt 24.5]. Acaso não são Cristo esses que, por meio de seu sacrifício cotidiano, repetido em tantos milhares de lugares, oferecem o que Cristo realizou sozinho, uma vez, por meio de seu sacrifício único? Não significa isso tirar a fé da rocha da verdade, que existe em Cristo, e construir sobre a areia da mentira humana?
Vemos, portanto, que tipo de sacerdote resulta das ordenações papísticas. Na verdade, não são sacerdotes de Deus, mas sacerdotes de satanás, que calcam Cristo aos pés, [176] abolem seu sacrifício, vendem a si mesmos sob o nome dele e ensinam a crer em seus próprios sacrifícios. Portanto, já não é mais a questão se se deve solicitar e receber as ordens sagradas dos papistas, mas é questão fechada que, em parte alguma, se conferem as ordens sagradas ou se fazem sacerdotes menos do que sob o reino do papa. Aqui se apresenta de modo magnífico uma aparência de ordenação e criação de sacerdotes, mas ao rei das aparências nada mais compete do que oferecer aparências para, por meio delas, fortalecer suas abominações. Por isso a consciência da fé nos obriga a que, sob anátema divino, nos abstenhamos de nos deixarmos ordenar por eles. Por causa de nossa salvação, somos claramente compelidos a nos abstermos das execráveis e malditas ordenações deles. Ai daqueles que, cientes e sabedores, se dedicam a esse adversário de Deus e Baal-Peor[25].
Essa razão deveria comover a vós boêmios mais do que qualquer outra nação, pois não é apenas ímpio para vós perante Deus, como o é para os outros, mas também é torpe perante os homens terem que pedir as ordenações, como também recebê-las de vosso inimigo, que queimou a Hus e Jerônimo de Praga[26] com muitos outros, com a pior reputação, o mesmo que sempre vos quis ver extintos, que vos conspurca sem fim e de todas as maneiras, taxando-vos de heréticos e a cujos propósitos pestilentos resististes com tanto sangue. Não obstante, esse tirano sanguinário ainda não se arrepende de suas infâmias, não revoga o sangue inocentemente condenado, nem restitui o espólio sacrílego do nome de cristão, nem deplora ter derramado inutilmente tanto sangue alemão contra vós, com prejuízo para as almas, por causa de sua tirania sacrílega. Sua fronte e cerviz continuam endurecidas a tal ponto que, ainda hoje, gostaria de ver destruídos a vós e a nós de uma só vez, para que assim não sobrasse sequer uma faísca que brilhasse um pouquinho por Cristo.
Até hoje mantém sob sua excomunhão fútil e nula o rei Jorge[27] com sua família de Münsterberg, o glorioso ducado boêmio e, da mesma maneira, muitos outros. Mas é bom que seja revelado o homem do pecado, do qual Pedro profetizou[28] que irá amaldiçoar reis e príncipes, sem nenhum temor. Nós, porém, ainda temos outro bispo que pode transformar essa sua maldição em bênção, como está escrito: Eles amaldiçoam, tu, porém, bendizes” [Sl 109.28]. De modo que a maldição do papa [177] lançada contra o rei Jorge, o ducado de Münsterberg e qualquer que sofreu a mesma coisa, sempre foi e ainda é como aquela da qual Salomão diz em Pv 26[.2]: “Como o pássaro que voa pelo alto, assim a maldição proferida sem causa não sobrevém”. Muito antes, até hoje, isso continua sendo eternamente exímia glória perante Deus para o rei Jorge e sua casa, acima dos demais reis e príncipes da terra, o fato de ter sido amaldiçoado pela maldizente Sé e pelo filho da maldição.
Quereis vós boêmios, sem motivo, continuar recebendo as sacrílegas e execráveis ordenações das mãos de vosso inimigo tão cruel, cruento, maldizente, implacável, abominável a Deus e aos homens, e continuar a ter qualquer relação com ele? Pois, fazendo isso, não consentis de fato com aquele que vos condena e não lhe estais dando razão? Não estais transformando o santo sangue de João Hus, derramado inocentemente, em sangue ímpio, confessando que foi derramado merecidamente ao beijardes as mãos que o derramaram, ao cairdes aos pés daquele que vos calca aos pés e tortura com infâmia eterna? Quanto mais justo seria se vos separásseis tanto dele que, se possível, não sentisses sequer o cheiro pestilento de seu nome. Se Paulo ordenou evitar o fornicador e o ébrio[29], quanto mais é dever de todos os que confessam a Cristo evitar essa derradeira e incorrigível abominação devastadora de tudo.
Permiti-me, por isso, prezados senhores, conseguir de vós primeiramente, sim, a própria consciência e o temor de Deus deve compelir-vos contra toda resistência, que doravante nem soliciteis, nem aceiteis ordenações desse filho da perdição, ainda que ele o ofereça. Muito menos ainda deveis aceitar alguém ordenado por ele, que se apresenta ostentando o nome e a marca da besta[30]. Pois se não conseguirmos isso previamente, estamos trabalhando em vão e estamos procurando debalde caminhos como ajudar-vos. Então também vosso afamado dissenso, sim, vossa feliz separação do reino de satanás seria somente aparência e disfarce. Pois que sentido faz gloriar-se de ter-se livrado do jugo do papa e, não obstante, não admitir outros guias das consciências do que os carrascos e ladrões do tirano, ao qual se abjurou? Não dirá o mundo inteiro que tudo que conquistastes com tanto sangue, tantos perigos tanta ignomínia para vosso nome de cristãos, e por terdes suportado eternamente o nome de hereges, serviu apenas para vos desvencilhardes da tirania do papa de nome mas que, de fato, duplicastes a tirania dele sobre vós? Em situação mais feliz, nós estultos alemães sofremos apenas sua tirania simples, sem o título da obediência recusada, visto que sofremos, de fato, o que o nome designa, para não nos consolarmos com falsa glória de nossa miséria, isso é, proporcionar uma satisfação especial ao execrável tirano com nosso próprio escárnio.
“Mas como proceder”, dirá alguém, “pois a necessidade não se preocupa com essas coisas. Não temos sacerdotes e não podemos ficar sem eles.” Se for assim, se deveria ter pensado nisso, dito e observado isso [178] antes de romper com o papa, ou então, certamente seria preferível, ainda agora, retomar o mais depressa possível à condição da servidão abandonada do que, depois de perdida a liberdade de modo tão infeliz, gozar apenas o reclamado título de uma liberdade e ser alimentado com vento, sob um cativeiro duplamente duro. Resta-nos, portanto, enfrentar a situação e aprender a providenciar para nós mesmos presbíteros, fora da tirania do papa, ou então, se não quisermos isso (embora o possamos), submeter-nos resignados e de bom grado ao cativeiro e servir de modo consciente e prudente à escravatura da perdição sob o rei da perdição, o que Cristo, nosso misericordioso Senhor e Mestre, queira impedir. Amém.


[1] De instituendis ministris ecclesiae ad senatum Pragensem Bohemiae. - WA 12,169-196. Tradução do original latino: Ilson Kayser, com a colaboração de Egbertus Ossewaarde.
[2] Calixtinos ou utraquistas são defensores da forma de comunhão sob duas espécies, isto é, que permite também ao leigo tomar o cálice. As expressões originaram-se do latim calix (cálice) e sub utraque forma
(sob duas formas). Os calixtinos ou utraquistas constituíram a ala moderada do movimento hussita. Sobre João Hus, cf. abaixo, p. 90, n. 26.
[3] Cf. WA 12,160-163.
[4] V., abaixo, p. 87,9-37;88,15;89,21-90,18;91,17-92,10;96,5-8;100,16;101,22s.;108,31-109,11.
[5] V. abaixo, p. 87,18-28;88,12-25.
[6] V. abaixo, p. 93,16-95,14.
[7] V. abaixo, p. 95,15-96,31;97,17-29;98,21-100,6;100,24-34;101,26-102,9; 103,5-9; 103,22-104,11; 104,15-36; 105,26-37. Nas p. 92,33-105,12, abaixo, encontra-se a maior e mais extensa explanação a respeito do sacerdócio dos crentes. De resto, chama atenção a grande proximidade entre o presente escrito e “Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores - Fundamento e Razão da Escritura”, v. acima, p. 28-36.
[8] V. abaixo, p. 105,1-12;106,26-35;107,9-31;108,20-30;110,9-14.
[9] V. abaixo, p. 109,28-110,31.
[10] V. abaixo, p. 96,39;97,34; 109,4; 111,10-25; 112,11 -113,2.
[11] Galo Cahera foi, segundo o próprio Lutero, responsável por ele ter escrito “Como Instituir Ministros na Igreja” (cf. WA 12,161). Foi eleito administrador dos utraquistas em Praga, depois de sua volta para Wittenberg. Fracassou, no entanto, na tentativa de abolir o celibato e, para permanecer no cargo, afastou-se novamente de Lutero, retomando para a Igreja romana. Cf. WA 12 162s
[12] V. abaixo, p. 111,26-113,2.
[13] Paulo Speratus (1484-1551), foi pastor em Königsberg, depois, bispo na Prússia Oriental, companheiro de Lutero, muito perseguido. Tomou-se conhecido também como compositor de hinos. Cf. Hinos do Povo de Deus, nº 156 e Hinário Luterano, nº 373.
[14] WA 12,166-168.
[15] WA 12,164s.
[16] Lutero constrói um neologismo, combinando sacramentum com exsecratio.
[17] Cf. Jo 10.1s.
[18] Cf. Is 13.21-22.
[19] Cf. Jo 10.10
[20] Cf. 2Ts 2.3.
[21] Segundo a doutrina da Igreja romana, a ordenação imprime ao sacerdote ordenado um caráter indelével, que o acompanha para todo sempre.
[22] Com benefício” se designa a prebenda que o sacerdote ou bispo passava a usufruir e da qual tirava seu sustento.
[23] Cf. At 20.28.
[24] Cf. Mt 24.15.
[25] Cf. Nm 25.3s.
[26] João Hus, (1373[?]-1415), pré-reformador tcheco, discípulo de Wyclif. Antecipou alguns princípios reformatórios de Lutero: atacou a corrupção do clero, denunciou o comércio de indulgências, declarou a Bíblia única norma de doutrina, ensinou que a Igreja é a comunhão de todos os crentes e que Cristo, e não o papa, e o cabeça da Igreja. Preservou a transubstanciação na Eucaristia e a invocação de santos. Como discípulo do teólogo inglês João Wyclif (ca. 1328-1384), foi o grande propagador do wyclifismo boêmio. Excomungado, apelou para um concílio. Recebeu salvo-conduto para ir ao Concílio de Constança (1414-1418 - o 16º concílio ecumênico), que o condenou como herege, sendo lançado à fogueira ainda no mesmo dia — 6 de julho de 1415, morrendo de pé, rezando por seus inimigos e invocando a Cristo e Maria - Jerônimo de Praga, igualmente discípulo de Wyclif, desde 1407 porta-voz do wyclifismo boêmio ao lado de João Hus. Também foi condenado como herege pelo Concilio de Constança e queimado vivo em 30 de maio de 1416. Devido à execução de Hus e Jerônimo, eclodiram as guerras hussitas (1419-1436). Cf. a opinião de Lutero sobre a questão dos boêmios: OSel 2,325ss.
[27] Jorge Podiebard foi excomungado pelo papa Pio II em 26 de junho de 1464, e destituído da coroa pelo papa Paulo II, em 23 de dezembro de 1466; seus descendentes foram declarados imprestáveis para qualquer dignidade e herança. Acusação principal: celebração da Santa Ceia sob ambas as espécies, na qual os boêmios insistiam. Em 29 de junho de 1522, um neto seu, duque Carlos von Münsterberg, havia escrito a Lutero, queixando-se de sua condição de excomungado que ainda pesava sobre sua família.
[28] Cf. 2Pe 2.10.
[29] Cf. Rm 13.12,13; Ef 5.3,18.
[30] Cf. Ap 19.20.


Obras Selecionadas de Lutero, v. 7, pp 25 a 36
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