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Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos[1]
1532
Introdução
Lutero se dirige a Eberhard von der Tann[2]
que, juntamente com Justo Mênio[3],
se destacou como adversário dos “anabatistas”[4].
Durante alguns anos ambos observavam atentamente as atividades destes.
Inclusive, Mênio interrogou em 1531 diversas pessoas diretamente ligadas a
eles. Aí se evidenciou que foram novamente batizadas em casas de particulares,
por pregadores ambulantes que ganhavam a vida como trabalhadores rurais
sazonais. O contato com estes “intrusos e pregadores clandestinos” tinha como
consequência que as pessoas desistiam de participar do culto comunitário e dos
sacramentos. Esperavam para logo que Deus iria punir o mundo, salvando, porém,
a elas. Além disso, em parte, rejeitavam qualquer forma de governo[5].
Já em 1525, Lutero tinha explicado que pregador, ou é diretamente enviado da
parte de Deus e então, por este confirmado mediante milagres, ou é vocacionado
ordenadamente por uma comunidade ou autoridade civil, favorável à Reforma[6].
Em Von der Widdertauffe an zween Pfarherrn (1528)[7],
tomou posição frente à doutrina dos “anabatistas” até onde ele a havia
percebido[8],
ressaltando o Batismo de crianças como veículo precípuo da graça de Deus.
Agora, no escrito “Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores
Clandestinos”, vê o erro básico deles no fato de se imiscuírem nas comunidades
sem terem sido vocacionados formalmente. Em contraposição, enfatiza
sobremaneira a ordenação e a vocação, a autoridade e responsabilidade dos ordenados
e vocacionados pela pura doutrina e pregação. Não é novo o fato de Lutero se
referir a isso. Nunca, no entanto, insistira na ordenação e vocação com tanta
energia como o faz no presente escrito[9].
Sem estas “não sobrara mais Igreja em parte alguma”[10].
A. Baeske
Ao severo e firme Eberhard von der Tannen, administrador do
Wartburgo, meu benevolente senhor e amigo.
Graça e paz em Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém. Fiquei
sabendo, prezado senhor e amigo, que aí entre vós e na circunvizinhança, os
anabatistas[11]
gostam de infiltrar-se, querendo infectar os nossos com seu veneno. Sei muito
bem que estais suficientemente instruídos e advertidos pelo livro de Justo
Mênio[12]
e também que exerceis vosso ofício de modo honesto e louvável contra esses
mensageiros do diabo. O diabo, porém, não desiste facilmente, e há muitos que,
tendo dado uma lida superficial num livro, atiram-no num canto e esquecem todas
as advertências. Aí se necessitaria de alguém que os admoestasse diariamente,
sem cessar. Por isso me propus, com a presente carta a vós, a rogar e advertir
uma vez mais os magistrados, cidades e senhores, a embargarem a atividade
desses intrusos, para fazermos nossa parte.
O primeiro ponto em que se pode apanhá-los facilmente é o
seguinte: quando se pergunta por sua vocação, quem os teria enviado para cá
sorrateiramente a pregar na clandestinidade, eles não têm resposta, nem são
capazes de apresentar sua credencial. E eu vos digo: mesmo que esses intrusos
não tivessem outro defeito e fossem santos perfeitos, esse único ponto (o fato
de se infiltrarem sem terem recebido uma ordem e sem terem sido chamados)
prova, com clareza, que são mensageiros e mestres do diabo. Pois o Espírito
Santo não se infiltra na clandestinidade, mas desce publicamente do céu. As
cobras se aproximam sorrateiramente, mas as pombas voam. Por isso essa
infiltração clandestina é a legítima forma de o diabo se aproximar, isso é
certo!
Ouvi dizer que os intrusos se infiltram entre os segadores e
pregam no campo durante o trabalho. Da mesma forma, infiltram-se entre os
carvoeiros e se aproximam de pessoas individualmente nas florestas, semeando em
toda parte, espalhando seu veneno e afastando as pessoas de suas igrejas
paroquiais. Eis aí a maneira legítima de o diabo se movimentar e agarrar as pessoas,
como teme a luz e age no escuro. Quem seria tão atrasado a ponto de não
perceber que se trata de verdadeiros mensageiros do diabo? Se fossem de Deus e
honestos, procurariam, antes de mais nada, o pastor, para negociar com ele:
apresentariam seu mandado, lhe exporiam suas convicções de fé e perguntariam se
ele estaria disposto [519] a admiti-los como pregadores públicos. Caso o pastor
não os admitisse, estariam desculpados perante Deus. Poderiam então sacudir o
pó de seus pés etc.[13].
Pois o púlpito, a administração do Batismo e do Sacramento são da
responsabilidade do pastor, e toda a cura d’almas lhe foi confiada. Agora,
porém, querem desalojar o pastor clandestinamente com todo seu mandato, sem, no
entanto, revelarem seu mandato secreto. Esses são autênticos ladrões e
assassinos de almas, blasfemadores e inimigos de Cristo e sua Igreja.
Aqui, com efeito, a única solução é que ambas as
autoridades, a espiritual e a secular, se empenhem com afinco. A autoridade
espiritual tem que instruir o povo permanentemente, com todo o empenho, incutir
os pontos supramencionados, que não admitam nenhum intruso e o identifiquem com
segurança como mensageiro do diabo, e lhes ensine a perguntar: De onde vens?
Quem te enviou? Quem te deu a ordem de pregar-me? Onde tens credenciais seladas
que provem que foste enviado por homens? Onde estão teus sinais milagrosos que
provem que Deus te enviou? Por que não procuras nosso pastor? Por que me
procuras clandestinamente e te escondes nos cantos? Por que não atuas publicamente?
Se és filho da luz, por que temes a luz? Com essas perguntas deveria ser fácil
embargá-los (a meu ver), pois não têm como provar sua vocação. E se nós
pudéssemos incutir no povo esse conceito de vocação, seria fácil
desembaraçar-se desses intrusos. Também é preciso instruir e adverti-los sempre
no sentido de denunciarem esses intrusos ao pastor. isso é sua obrigação, se
querem ser cristãos e salvar-se. Pois, se não o fizerem, colaboram com o
mensageiro do diabo e intruso a roubar sorrateiramente do pastor (sim do
próprio Deus) seu ministério da pregação, o Batismo, o Sacramento e a cura
d'almas e, além disso, aliciar seus paroquianos, devastando e destruindo, desse
modo, a paróquia (que Deus instituiu). Se ouvissem e tomassem conhecimento dessa
advertência quanto ao conceito de vocação, alguns corações cristãos certamente
iriam denunciar esses pregadores clandestinos e traiçoeiros ao pastor. Porque,
como dito: quando se insiste na vocação, certamente se pode intimidar o diabo.
Um pastor, afinal, pode gloriar-se de ocupar pública e legitimamente o
ministério da pregação, do Batismo, do Sacramento e da cura d’almas, e que esse
lhe foi confiado o que, aliás, se deve exigir e esperar dele. Os traiçoeiros e
estranhos intrusos, porém, não podem gloriar-se disso e têm que confessar que
vêm como estranhos e que invadem um ministério alheio. Isso não pode ser obra
do Espírito Santo, mas deve ser obra do tinhoso diabo.
A autoridade secular também deve empenhar-se, pois, visto
que esses intrusos são mensageiros do diabo, pregam mero veneno e mentiras; e
visto que o diabo [520] não é apenas mentiroso[14],
mas também assassino, não pode dar outra: com esses seus mensageiros quer
provocar tumulto e matança (ainda que se abstenha disso por algum tempo e se
mostre pacífico), para, desse modo, derrubar ambos os regimes, o espiritual e o
secular, em oposição a Deus. Ele não pode proceder de outro modo, pois sua
natureza é mentir e assassinar. Por isso os seus, possessos dele, não têm
domínio sobre si; eles têm que agir como ele os impele.
Por essa razão, magistrados, juízes e as demais autoridades
governamentais deveriam saber e ter a certeza de que esses intrusos não apenas
são suspeitos de falsa doutrina, mas também, de assassinato e tumulto, porque
sabem que essas pessoas são cavalgadas pelo diabo. Através de seus funcionários
deveriam reunir os súditos, esclarecer-lhes essas coisas, adverti-los contra
esses patifes e ordenar solenemente, sob pena de severo castigo, que cada
súdito denuncie esses intrusos, como, aliás, é dever dos súditos, se não
quiserem tornar-se cúmplices de toda a matança e tumulto que o diabo tem em
mente, etc. Da mesma forma, também a autoridade espiritual deve insistir na
vocação e perguntar ao intruso ou seu hospedeiro: De onde vens? Quem te
enviou?, etc., como acima. E perguntar ao hospedeiro: Quem te ordenou hospedar
esse intruso, ouvir sua pregação clandestina? De onde sabes que ele tem a ordem
de instruir-te e que tens que aprender dele? Por que não informaste o pastor ou
a nós? Por que abandonas tua Igreja, na qual foste batizado, instruído e
recebeste a comunhão, e onde é teu lugar pela ordem de Deus e mergulhas na clandestinidade?
Por que instituis algo novo, clandestinamente e sem teres recebido a ordem para
isso? Quem te deu poder para dividir esta paróquia e provocar tumultos entre
nós? Quem te ordenou desprezar teu pastor, a julgar e condená-lo à revelia,
antes mesmo de ter sido ouvido ou acusado? De onde tens a autoridade para te
arvorares em juiz de teu pastor, sim, inclusive em teu próprio juiz?
Pois são esses os vícios e outros mais que comete todo
aquele que adere aos intrusos, e é justo que se o chame à responsabilidade.
Tenho grande esperança de que, se a autoridade se empenhasse nesse sentido,
isso resultaria em grande proveito, e muitas pessoas cristãs se acautelariam e
ajudariam a expulsar esses patifes, caso soubessem que os intrusos constituem
um perigo tão grande e que a vocação e a ordem é algo importante. Pois, caso
não se insistir na vocação ou ordem, por fim, não sobrará mais Igreja em parte
alguma. Pois da mesma maneira como os intrusos se [521] infiltram cá entre nós,
querem causar separação em nossa Igreja e destruí-la, depois apareceriam outros
intrusos nas igrejas deles, causando separação e destruindo-as. E daí uma
infiltração e cisão sucederia à outra, sem fim, ou então, nada mais sobraria de
qualquer Igreja na terra. É justamente isso que o diabo gostaria de conseguir e
tenta por meio desses espíritos tumultuadores e intrusos.
Por isso, o procedimento é o seguinte: ou provai que fostes
chamados e que tendes a ordem para pregar, ou silenciai imediatamente. Estais
proibidos de pregar, porque aqui se trata de um ministério, sim, de um
ministério da pregação. Ora, ninguém pode ser detentor de um ministério fora ou
sem ordem e vocação. Por isso Cristo diz na parábola de Mateus 25 que o patrão
não confiou os talentos a seus empregados, para negociarem com eles, antes de
os ter chamado e dado a ordem de negociar. Vocatis servis, diz o texto, et
negotiemini, etc. — “Convocou seus empregados”, diz ele, “e lhes ordenou que
negociassem com seu dinheiro”. Que o intruso também apresente uma vocação e
ordem nesse sentido, ou então, deixe o dinheiro do SENHOR em paz; do contrário
será considerado ladrão e charlatão. Da mesma forma, os trabalhadores não
entraram na vinha do patrão, Mateus 20[.1-16], antes de os ter contratado e
lhes ter ordenado ir. Antes de receberem a ordem e a vocação, andaram ociosos o
dia inteiro.
A mesma coisa diz Deus a respeito desses intrusos: “Eles
correm, sem que eu os tivesse enviado; pregam, sem que eu lho tivesse ordenado”
[Jr 23.21]. Ainda há que se empenhar muito esforço e trabalho para conseguir
que preguem retamente e se atenham à reta doutrina os que têm o chamado e
receberam a ordem legítima do próprio Deus, ou foram chamados e receberam a
ordem por homens em nome de Deus. Se esse é o caso, como será quando se prega
sem ordem de Deus, sim, contra a ordem e a proibição de Deus, somente por
estímulo e iniciativa do diabo? Aí nenhuma pregação será bem-vinda a não ser a
inspirada pelo espírito do mal, e só pode haver doutrina do diabo, por mais
brilhante que seja.
Quem teve um chamado mais claro e legítimo do que Arão, o
primeiro sumo sacerdote? Não obstante, caiu na idolatria e ordenou aos judeus
que fizessem o bezerro de ouro[15]
Posteriormente, a maioria do sacerdócio levítico se entregou à idolatria e,
além disso perseguiram a Palavra de Deus e todos os verdadeiros profetas[16].
Também o rei Salomão fora chamado e confirmado de modo maravilhoso. Mesmo
assim, entregou-se à idolatria na velhice[17].
Acaso os bispos e papas não têm um chamado e ordem maravilhosos? Não estão eles
sentados nas cátedras dos apóstolos e no lugar de Cristo? Não obstante, todos
eles são os piores inimigos do Evangelho, muito menos se pode esperar deles que
ensinem corretamente e realizem verdadeiro culto a Deus.
Ora, se o diabo é capaz de enganar os mestres que o próprio
Deus chamou, instituiu e ordenou, a ponto de ensinarem falsamente e perseguirem
a verdade, como ensinaria algo de bom por meio dos mestres que ele impulsiona e
ordenou sem e até contra a ordem de Deus [522], e não muito antes, a pura
mentira diabólica? Já disse muitas vezes e tomo a dizer: Não aceitaria os bens
do mundo inteiro em troca de meu título de doutor. Pois, sem dúvida, por fim eu
teria que desanimar e desesperar em face da grande e pesada obra que pesa sobre
mim, se eu a tivesse iniciado como intruso, sem chamado e ordem. No entanto,
Deus e o mundo são minhas testemunhas de que a empreendi publicamente em meu
ministério de doutor e da pregação, e assim a conduzi até agora com a graça e
ajuda de Deus.
É verdade que há os que argumentam que, em 1Co 14[.30], São
Paulo teria concedido a qualquer um a liberdade de pregar na comunidade e,
inclusive, contestar o pregador ordenado, ao dizer: “Se o que está sentado
tiver uma revelação, cale- se o primeiro”. Por isso os intrusos acreditam terem
a autoridade e o direito de julgar o pregador de qualquer igreja em que entram
e de pregar diferente. Isso, porém, é um grande engano. Os intrusos não
observam bem o texto e tiram dele, ou melhor, introduzem nele o que querem. Na
referida passagem, São Paulo fala dos profetas que devem ensinar, e não do povo
que escuta. Profetas, porém, são mestres detentores do ministério da pregação
na Igreja. Se assim não fosse, por que se chamaria alguém de profeta? Portanto,
peça ao intruso que primeiro prove ser profeta ou mestre na Igreja à qual
chega, e quem lhe confiou esse ministério. Depois disso se há de ouvi-lo, de
acordo com o ensinamento de São Paulo. Se não o conseguir provar, manda-o para
o diabo, que o enviou e lhe deu a ordem de usurpar um ministério da pregação
alheio, numa igreja à qual também não pertence como ouvinte ou discípulo, que
dirá como profeta e mestre.
Que modelo fabuloso daria isso se qualquer pessoa tivesse o
direito de interromper o discurso do pastor e de começar a discutir com ele! E
logo mais, um terceiro se intrometeria no debate dos dois, mandando também
calar a esse segundo. E depois, ainda viria um bêbado da bodega da esquina e
interviria na discussão desses três, mandando também ao terceiro calar-se. Por
fim, inclusive, as mulheres quereriam fazer uso desse direito, como “a que está
sentada”[18],
mandando os homens calar, e depois uma mulher a outra - que algazarra, que gritaria
de bodega, que festa popular daria isso! Até num chiqueiro as coisas seriam
mais ordeiras do que numa igreja dessas. Que o diabo seja pregador em meu
lugar! Os cegos intrusos, porém, não pensam nessas coisas. Acham que somente
eles são “os que estão sentados” e não percebem que qualquer um dentre os
demais [523] deveria ter o mesmo direito, e também poderia mandá-los calar.
Eles próprios não sabem o que dizem, o que significa “estar sentado” ou
“falar”, o que significa “profeta” ou “leigo” nessa palavra de São Paulo.
Quem quiser, leia todo o capítulo e descobrirá que nele São
Paulo se refere à profecia, à instrução e pregação na comunidade ou igreja. Ele
não ordena à comunidade pregar, mas está falando com os pregadores que pregam
na comunidade ou na reunião. Do contrário, não poderia proibir às mulheres que
preguem, pois também elas são parte da comunidade cristã. A deduzir do texto, a
situação era a seguinte: na igreja, os profetas, como os legítimos pastores e
pregadores, estavam sentados no meio do povo, e um ou dois deles recitavam ou
liam o texto, como ainda hoje é costume, por ocasião das grandes festas, em
algumas igrejas, que duas pessoas cantem o Evangelho.
Em seguida, um dos profetas, que estava na vez, passava a
discursar sobre esse texto, explicando-o, a exemplo do que foram as homilias na
Igreja romana. Tendo esse acabado de falar, outro podia acrescentar algo,
confirmar ou explicar [ainda melhor] o que disse o precedente, como fez São
Tiago em Atos 15[.13ss.], respondendo ao discurso de São Pedro, confirmando e
explicando-o. Do mesmo modo procedeu São Paulo nas sinagogas, especialmente, em
Antioquia da Pisídia. Lucas relata que, após a leitura da Lei, os chefes da
sinagoga também permitiram que Paulo falasse. Paulo então se levantou e falou,
no entanto, na qualidade de apóstolo comissionado; além disso, fora convidado
pelo chefe da sinagoga e não, como intruso. Fica, pois, evidente que a
expressão “estar sentado” se refere somente aos profetas e pregadores
ordenados: aquele que dentre eles deveria falar, erguia-se, ou então ficava
sentado, dependendo da importância do assunto.
Isso se compara a um príncipe reunido com seus conselheiros,
ou a um burgomestre reunido com seus colegas conselheiros. Aí um deles se
levanta e faz seu discurso e depois, outro. Por fim, aceitam unanimemente
aquele que fez a melhor proposta. Assim um ajuda ao outro com seu conselho e
tudo acontece de forma ordeira. No mesmo sentido, os profetas eram como que o
conselho da Igreja, para ensinar a Escritura e governar e prover a comunidade.
Acaso se deveria admitir que um vagabundo e estranho qualquer viesse, ou um
cidadão sem mandato se infiltrasse para recriminar e instruir o burgomestre?
Isso não acabaria bem. A gente deveria agarrá-lo pelo cangote e entregá-lo a
mestre João[19].
Esse lhe mostraria seu devido lugar.
[524] Muito menos se deve tolerar que um intruso estranho se
insinue num conselho espiritual, isso é, no ministério da pregação, ou que um
leigo se arrogue a pregar em sua igreja paroquial sem ser chamado. Isso deve
ser e permanecer incumbência dos profetas. Eles é que deverão cuidar da
doutrina, ensinar um após o outro e sempre ajudar-se fielmente uns aos outros,
de modo que tudo se desenrole de forma decente e ordeira, diz São Paulo[20].
Como, porém, as coisas podem ser feitas de modo decente e ordeiro onde cada
qual interfere no ministério alheio, que não lhe foi ordenado e, se todo leigo
quer levantar-se na igreja, querendo pregar?
Admira-me, porém, visto serem espiritualmente tão
instruídos, por que não aduzem os exemplos onde também mulheres profetizaram,
governando, desse modo, os homens, terra e gente, como Débora, em Juízes 4, que
derrotou o Rei Jabim e Sísera, e governou a Israel; e a profetisa de
Abel-Bete-Maaca, que viveu no tempo de Davi, conforme 2Reis 20 [sc. 2Samuel
20.13ss.]; e a profetisa Hulda, na época de Josias, em 4 Reis 22 [sc. 2Rs
22.14ss.]; e muito antes, Sara, que instruiu a seu senhor Abraão que expulsasse
a Ismael com a mãe Hagar; e Deus ordenou que lhe obedecesse[21].
E outras ainda, como, por exemplo, a viúva Ana, Lc 2[.36ss.], e a virgem Maria,
Lc 1[.46ss.]. Aí eles teriam argumentos e poderiam autorizar também as mulheres
a pregar na Igreja. Quanto mais poderiam os homens pregar, onde e quando
quisessem, segundo esses exemplos.
Não queremos discutir aqui o direito que essas mulheres do
Antigo Testamento tiveram para ensinar e governar. Naturalmente não o fizeram
como intrusas, sem chamado e por iniciativa religiosa própria, ou por
presunção. Se assim fosse, Deus não teria confirmado seu ministério e obra com
milagres e grandes feitos. No Novo Testamento, porém, o Espírito Santo ordena,
através de São Paulo, que as mulheres devem silenciar na Igreja[22]
ou na comunidade, e diz que isso é mandamento do SENHOR[23].
Não obstante, ele sabia perfeitamente que Joel havia anunciado que Deus iria
derramar seu Espírito também sobre suas servas[24];
além disso, sabia que as quatro filhas de Filipe haviam profetizado, Atos
21[.8s.]. Na comunidade ou Igreja, porém, onde existe o ministério da pregação,
elas deveriam silenciar e não pregar[25].
No mais, podem perfeitamente acompanhar as orações, o canto e dizer o “amém”
ler em casa e instruir, admoestar, consolar-se mutuamente; também podem interpretar
a Escritura da melhor maneira possível.
Resumindo: São Paulo não tolera a petulância e insolência de
alguém intrometer-se em algum ministério alheio; cada qual observe a ordem
[525] e o ofício recebido e se dedique a ele, deixando intacto e em paz o
ofício do outro. No mais, pode instruir-se, ensinar, cantar, ler, explicar a
não querer mais, desde que tenha o direito e autorização para isso. Se Deus
quiser fazer algo especial, fora e acima dessa ordem dos ministérios e da
vocação, e suscitar alguém que esteja acima dos profetas, ele o demonstrará com
sinais e feitos, como falou através da jumenta e repreendeu os profetas de
Baal, seu senhor[26].
Quando não fizer isso, queremos ater-nos aos ministérios e mandatos
instituídos. Se [seus titulares] não ensinarem corretamente, que tens tu a ver
com isso? Tu não precisas prestar contas disso.
Por essa razão, São Paulo usa mais vezes o termo
“comunidade”[27]
neste capítulo, fazendo certa distinção entre os profetas e o povo. Os profetas
falam, a comunidade ouve. Pois diz: “Quem profetiza edifica a comunidade” [1Co
14.4], e mais abaixo: Procurai edificar a comunidade, para que tenhais plena
suficiência” [v. 12]. Quem são esses que devem edificar a comunidade? Acaso não
são os profetas e (na expressão dele) os que falam em línguas, isto é, os que
leem e cantam o texto, enquanto a comunidade ouve? São os profetas que devem
explicar o texto para a edificação da comunidade? Ora, está suficientemente
claro que aqui ele ordena à comunidade que ouça e se edifique, e não à doutrina
nem ao ministério da pregação. E faz mais outra distinção clara, chamando a
comunidade de “leigos”, dizendo: “Se bendisseres no espírito, como poderá
aquele que ocupa o lugar do leigo dizer ‘amém’, visto que não entende o que
dizes? Com efeito, dás graças de maneira maravilhosa, mas o outro não é
edificado” [1Co 14.16s.]. Aí se estabelece uma vez mais uma diferença entre
pregador e leigo. Mas que necessidade temos de muitas palavras? O texto está aí
e, também, a razão ensina que não se deve interferir em um ministério alheio.
Pois São Paulo diz: “Que falem dois ou três profetas e os
outros julguem”, etc. [1Co 14.29]. Aqui não se fala de outra coisa senão dos
profetas, dos quais um ou dois devem falar, enquanto os outros julgam. Quem são
esses “outros”? O povo? De forma alguma! Trata-se dos outros profetas que devem
auxiliar na pregação na Igreja e edificar a comunidade. Esses devem julgar e
ajudar a cuidar, para que se pregue corretamente. E se um dos profetas ou
pregadores conseguir expressar-se com acerto, o primeiro deve consentir e
dizer: É verdade, tens razão; eu não havia entendido corretamente o assunto —
como acontece em tomo de uma mesa ou em outro assunto qualquer, onde um dá
razão ao outro (também em questões seculares). Da mesma forma, um deve ceder
tanto mais ao outro no presente caso.
Aí se vê de que modo maravilhoso e diligente os intrusos
leram as palavras de São Paulo, das quais deduzem para si o direito de se
manifestarem em todas as igrejas, [526] ou seja, de agredir a todos os
pregadores da cristandade inteira, julgar e ofendê-los, arvorando-se eles
mesmos em pessoas ordenadas e juízes de púlpitos alheios. São verdadeiros
assaltantes e assassinos os que interferem criminosa e violentamente no
ministério alheio. Contra isso, São Pedro ensina em 1Pe 4[.15]: “Nenhum de vós
sofra como malfeitor ou como quem se intromete em negócio alheio”.
Embora haja caído no esquecimento o costume de os profetas
ou pregadores estarem sentados na igreja e falarem alternadamente (como São
Paulo diz aqui), ainda restou um pequeno indício e vestígio disso no canto
alternado do coro e nas leituras alternadas, cantando-se depois uma antífona,
um hino ou responsório em conjunto; ou quando um pregador interpreta a leitura
do outro e um terceiro, a explica ou prega sobre ela. Portanto, a maneira
correta de se ensinar na Igreja seria essa referida por São Paulo. Aí um
cantaria ou leria em línguas, outro profetizaria ou interpretaria, o terceiro o
explicaria, mais outro, por sua vez, o confirmaria ou explicitaria melhor com
citações e exemplos, como o fez São Tiago em Atos 15[.13ss.], e São Paulo em
Atos 13[.14s.]. Isso seria melhor que a mera leitura da perícope, ou do que
cantá-la em latim, numa língua desconhecida, como as freiras rezam o Saltério.
Embora São Paulo não condenasse a glossolalia para si mesmo, não a recomenda
nem ordena na igreja sem interpretação.
Não quero, porém, aconselhar a reintrodução desse
procedimento e a eliminação do púlpito; antes quero defendê-lo, pois hoje as
pessoas são demasiadamente intempestivas e intrometidas, e poderia insinuar-se
um diabo entre pastor, pregador e capelão[28],
de modo que um quisesse estar acima do outro, passando eles a brigar e
ofender-se diante do povo, querendo cada qual ser o melhor. Por isso é melhor
conservar o púlpito, pois aí as coisas acontecem, como ensina São Paulo, de modo
decente. Basta que numa paróquia os pregadores preguem um depois do outro e, se
quiserem, alternadamente nos diferentes lugares, que um deles explica à tarde
ou pela manhã o que o outro recitou ou leu na matutina ou na missa, como se
faz, de vez em quando, com o Evangelho e a Epístola. Pois São Paulo não insiste
tanto em que se devesse adotar a mesma prática, mas em que tudo seja feito em
ordem e decência, dando um exemplo. Visto que nossa prática de pregação é mais
ordeira entre nosso povo louco do que aquela, queremos mantê-la.
[527] Nos tempos dos apóstolos foi fácil manter a prática de
os profetas estarem sentados [no meio do povo], pois era um antigo costume de
prática diária entre o disciplinado povo do sacerdócio levítico, observado
desde Moisés. Mas não seria aconselhável reintroduzi-la hoje entre este povo
rude, indisciplinado e insolente.
Isso a respeito do dito de São Paulo. Resumindo: os intrusos
e pregadores clandestinos são apóstolos do diabo, dos quais São Paulo sempre se
queixa[29],
que entram nas casas e as perturbam, ensinando sempre sem saberem o que estão
dizendo ou afirmando. Por isso advirto e admoesto o poder espiritual, advirto e
admoesto o poder secular, advirto a todos os cristãos e a todos os súditos:
acautelai-vos deles e não lhes deis ouvidos. Quem os tolera e lhes dá ouvidos,
saiba que está ouvindo o maldito diabo em pessoa, do mesmo modo como fala
através de uma pessoa possessa. Fiz minha parte e também falei sobre esse
assunto na explicação do Salmo 82[30].
Estou desculpado. O sangue de cada um que não aceita um conselho bom e sincero
recaia sobre sua cabeça[31].
Com isso encomendo, caro senhor e amigo, a vós e os seus à graça e misericórdia
de Deus. A ele glória e gratidão, honra e louvor em eternidade, em Jesus
Cristo, nosso amado Senhor e Salvador. AMÉM.
[1]
Ein Brief D. Mart. Luthers von den Schleichern und Winkelpredigern- 1532. - WA
30/III,518-527. Tradução: Ilson Kayser.
[2]
Administrador do Wartburgo.
[3]
Justo Mênio (1499-1558), pastor e superintendente de Eisenach e mais tarde de
Gotha.
[4]
O termo “anabatista(s)”, derivado do grego, significa literalmente “o(s) que
batiza(m) de novo”. Denominava-se de anabatistas um grupo de pessoas de linha
entusiasta ou espiritualista. Inspiradas pela Reforma, entendiam que teriam que
aprofundá-la. Um dos seus líderes era Tomás Müntzer. Entre outras peculiaridades,
como inspiração direta do céu, defendiam o rebatismo e o Batismo de adultos,
opondo-se ao Batismo de crianças.
[5]
WA 18,85,1-101,10 (em especial, 92,5-93,18). Cf. WA30/III,510ss.
[6]
WA 17/I,360,15-362,28 (cf. WA 18,96,15-98,14). V. abaixo, p.
116,33-35;121,28-31;122,12-17;146,8-13.
[7]
“Sobre o Rebatismo, a dois Pastores”, cf. WA 26,144-174.
[8]
WA 26,146,8s.;173,13-31.
[9]
Pregadores não chamados de maneira legítima pública são “mensageiros e mestres
do diabo”. (V. abaixo, p. 116,8s.,32s.;117,19s.;118,40-119,2;119,15;124,12s.,
17-19), “ladrões e charlatães” (p. 118,30), “verdadeiros assaltantes e
assassinos” (p. 123,15) e homens e mulheres que não os denunciam, colaboram com
eles e não serão salvos (p. 117,1-5). Embora dirigido contra a visão de Roma no
tocante ao sacerdócio e escrito um ano depois, faz-se necessário mencionar
expressamente Von der Winkelmesse und Pfaffenweihe (“Da Missa Particular e da
Consagração de Padres”), WA 38,185-256. Pois, com idêntica ênfase, Lutero
ressalta o ministério e a ordenação, bem como a sua interligação indissolúvel.
Só por meio da ordenação, a pessoa crente e batizada se toma “apóstolo,
pregador, professor e pastor”, WA 38,230,20. As pessoas mudam, mas não o
ministério, querido por Jesus Cristo e em prol da comunidade. Este ministério
sempre existiu e existirá. Apenas via ordenação, a pessoa entra nele. Cf. WA
38,241,6-24. Ocorre quase uma hipostatização do ministério, contudo, para o
fortalecimento da fé e da sua vivência entre o povo. Cf. W. STEIN, Das
kirchliche Amt bei Luther, Wiesbaden : Steiner, 1974, p. 200.
[10]
V. abaixo, p. 118,14-20.
[11]
V. acima, p. 114, n. 4. Cf. também abaixo, n. 12.
[12]
Depois da Guerra dos Camponeses (cf. OSel 6,273-401), ideias revolucionárias e
entusiastas, no espírito de Müntzer, continuaram pululando na Turíngia. O
movimento anabatista causava muitos problemas a Justo Mênio, superintendente de
Eisenach. Para combatê-lo, escreveu um livro intitulado “A Doutrina e o Segredo
dos Anabatistas”, dedicado ao duque Filipe de Hesse, a fim de incentivá-lo a
tomar medidas enérgicas contra os anabatistas. Isso em maio de 1530. Mênio
havia submetido seu manuscrito ao crivo de Lutero, que lhe deu apoio e o
prefaciou. O texto desse prefácio encontra-se em WA 30/II,211-214.
[13]
Cf. Lc 10.11.
[14]
Cf. Jo 8.44.
[15]
Cf. Êx 32.
[16]
Cf., p. ex., 1Sm 2.12ss.
[17]
Cf. 1Rs 11.4.
[18]
Cf. 1Co 14.30.
[19]
Mestre João designa, normalmente, a figura do carrasco, o executor das sentenças.
No presente caso, porém, parece ser empregado no sentido de disciplinador, o
encarregado da disciplina.
[20]
1Co 14.40.
[21]
Cf. Gn 21.9ss.
[22]
Cf. 1Co 14.34.
[23]
Talvez Lutero tivesse em mente a passagem de 1Co 7.10, na qual Paulo cita um
expresso mandamento de Deus para a mulher.
[24]
Cf. Jl 2.28s.
[25]
Cf. 1Tm2.11s.
[26]
Cf. Nm 22.21 ss.
[27]
Lutero traduz o termo grego ekklesia quase sempre como “comunidade”, e não como
“igreja”, como fazem Almeida, Bíblia de Jerusalém e Matos Soares.
[28]
Capelão é um pastor adjunto do pároco.
[29]
Cf. Tt 1.10.
[30]
Cf. o texto em WA31/I,189-218.
[31]
Caso não se retratassem, os anabatistas podiam ser condenados à morte.
Obras Selecionadas de
Lutero, v. 7, pp 25 a 36
Este livro completo e todos os outros da coleção, podem ser comprados na Editora Concórdia (https://www.editoraconcordia.com.br)
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