terça-feira, 10 de setembro de 2019

Ministério - Carta do Dr. Martinho Lutero sobre Intrusos e Pregadores Clandestinos

[docx completo]


Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos[1]


1532

Introdução

Lutero se dirige a Eberhard von der Tann[2] que, juntamente com Justo Mênio[3], se destacou como adversário dos “anabatistas”[4]. Durante alguns anos ambos observavam atentamente as atividades destes. Inclusive, Mênio interrogou em 1531 diversas pessoas diretamente ligadas a eles. Aí se evidenciou que foram novamente batizadas em casas de particulares, por pregadores ambulantes que ganhavam a vida como trabalhadores rurais sazonais. O contato com estes “intrusos e pregadores clandestinos” tinha como consequência que as pessoas desistiam de participar do culto comunitário e dos sacramentos. Esperavam para logo que Deus iria punir o mundo, salvando, porém, a elas. Além disso, em parte, rejeitavam qualquer forma de governo[5]. Já em 1525, Lutero tinha explicado que pregador, ou é diretamente enviado da parte de Deus e então, por este confirmado mediante milagres, ou é vocacionado ordenadamente por uma comunidade ou autoridade civil, favorável à Reforma[6]. Em Von der Widdertauffe an zween Pfarherrn (1528)[7], tomou posição frente à doutrina dos “anabatistas” até onde ele a havia percebido[8], ressaltando o Batismo de crianças como veículo precípuo da graça de Deus. Agora, no escrito “Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos”, vê o erro básico deles no fato de se imiscuírem nas comunidades sem terem sido vocacionados formalmente. Em contraposição, enfatiza sobremaneira a ordenação e a vocação, a autoridade e responsabilidade dos ordenados e vocacionados pela pura doutrina e pregação. Não é novo o fato de Lutero se referir a isso. Nunca, no entanto, insistira na ordenação e vocação com tanta energia como o faz no presente escrito[9]. Sem estas “não sobrara mais Igreja em parte alguma”[10].
A. Baeske

Ao severo e firme Eberhard von der Tannen, administrador do Wartburgo, meu benevolente senhor e amigo.
Graça e paz em Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém. Fiquei sabendo, prezado senhor e amigo, que aí entre vós e na circunvizinhança, os anabatistas[11] gostam de infiltrar-se, querendo infectar os nossos com seu veneno. Sei muito bem que estais suficientemente instruídos e advertidos pelo livro de Justo Mênio[12] e também que exerceis vosso ofício de modo honesto e louvável contra esses mensageiros do diabo. O diabo, porém, não desiste facilmente, e há muitos que, tendo dado uma lida superficial num livro, atiram-no num canto e esquecem todas as advertências. Aí se necessitaria de alguém que os admoestasse diariamente, sem cessar. Por isso me propus, com a presente carta a vós, a rogar e advertir uma vez mais os magistrados, cidades e senhores, a embargarem a atividade desses intrusos, para fazermos nossa parte.
O primeiro ponto em que se pode apanhá-los facilmente é o seguinte: quando se pergunta por sua vocação, quem os teria enviado para cá sorrateiramente a pregar na clandestinidade, eles não têm resposta, nem são capazes de apresentar sua credencial. E eu vos digo: mesmo que esses intrusos não tivessem outro defeito e fossem santos perfeitos, esse único ponto (o fato de se infiltrarem sem terem recebido uma ordem e sem terem sido chamados) prova, com clareza, que são mensageiros e mestres do diabo. Pois o Espírito Santo não se infiltra na clandestinidade, mas desce publicamente do céu. As cobras se aproximam sorrateiramente, mas as pombas voam. Por isso essa infiltração clandestina é a legítima forma de o diabo se aproximar, isso é certo!
Ouvi dizer que os intrusos se infiltram entre os segadores e pregam no campo durante o trabalho. Da mesma forma, infiltram-se entre os carvoeiros e se aproximam de pessoas individualmente nas florestas, semeando em toda parte, espalhando seu veneno e afastando as pessoas de suas igrejas paroquiais. Eis aí a maneira legítima de o diabo se movimentar e agarrar as pessoas, como teme a luz e age no escuro. Quem seria tão atrasado a ponto de não perceber que se trata de verdadeiros mensageiros do diabo? Se fossem de Deus e honestos, procurariam, antes de mais nada, o pastor, para negociar com ele: apresentariam seu mandado, lhe exporiam suas convicções de fé e perguntariam se ele estaria disposto [519] a admiti-los como pregadores públicos. Caso o pastor não os admitisse, estariam desculpados perante Deus. Poderiam então sacudir o pó de seus pés etc.[13]. Pois o púlpito, a administração do Batismo e do Sacramento são da responsabilidade do pastor, e toda a cura d’almas lhe foi confiada. Agora, porém, querem desalojar o pastor clandestinamente com todo seu mandato, sem, no entanto, revelarem seu mandato secreto. Esses são autênticos ladrões e assassinos de almas, blasfemadores e inimigos de Cristo e sua Igreja.
Aqui, com efeito, a única solução é que ambas as autoridades, a espiritual e a secular, se empenhem com afinco. A autoridade espiritual tem que instruir o povo permanentemente, com todo o empenho, incutir os pontos supramencionados, que não admitam nenhum intruso e o identifiquem com segurança como mensageiro do diabo, e lhes ensine a perguntar: De onde vens? Quem te enviou? Quem te deu a ordem de pregar-me? Onde tens credenciais seladas que provem que foste enviado por homens? Onde estão teus sinais milagrosos que provem que Deus te enviou? Por que não procuras nosso pastor? Por que me procuras clandestinamente e te escondes nos cantos? Por que não atuas publicamente? Se és filho da luz, por que temes a luz? Com essas perguntas deveria ser fácil embargá-los (a meu ver), pois não têm como provar sua vocação. E se nós pudéssemos incutir no povo esse conceito de vocação, seria fácil desembaraçar-se desses intrusos. Também é preciso instruir e adverti-los sempre no sentido de denunciarem esses intrusos ao pastor. isso é sua obrigação, se querem ser cristãos e salvar-se. Pois, se não o fizerem, colaboram com o mensageiro do diabo e intruso a roubar sorrateiramente do pastor (sim do próprio Deus) seu ministério da pregação, o Batismo, o Sacramento e a cura d'almas e, além disso, aliciar seus paroquianos, devastando e destruindo, desse modo, a paróquia (que Deus instituiu). Se ouvissem e tomassem conhecimento dessa advertência quanto ao conceito de vocação, alguns corações cristãos certamente iriam denunciar esses pregadores clandestinos e traiçoeiros ao pastor. Porque, como dito: quando se insiste na vocação, certamente se pode intimidar o diabo. Um pastor, afinal, pode gloriar-se de ocupar pública e legitimamente o ministério da pregação, do Batismo, do Sacramento e da cura d’almas, e que esse lhe foi confiado o que, aliás, se deve exigir e esperar dele. Os traiçoeiros e estranhos intrusos, porém, não podem gloriar-se disso e têm que confessar que vêm como estranhos e que invadem um ministério alheio. Isso não pode ser obra do Espírito Santo, mas deve ser obra do tinhoso diabo.
A autoridade secular também deve empenhar-se, pois, visto que esses intrusos são mensageiros do diabo, pregam mero veneno e mentiras; e visto que o diabo [520] não é apenas mentiroso[14], mas também assassino, não pode dar outra: com esses seus mensageiros quer provocar tumulto e matança (ainda que se abstenha disso por algum tempo e se mostre pacífico), para, desse modo, derrubar ambos os regimes, o espiritual e o secular, em oposição a Deus. Ele não pode proceder de outro modo, pois sua natureza é mentir e assassinar. Por isso os seus, possessos dele, não têm domínio sobre si; eles têm que agir como ele os impele.
Por essa razão, magistrados, juízes e as demais autoridades governamentais deveriam saber e ter a certeza de que esses intrusos não apenas são suspeitos de falsa doutrina, mas também, de assassinato e tumulto, porque sabem que essas pessoas são cavalgadas pelo diabo. Através de seus funcionários deveriam reunir os súditos, esclarecer-lhes essas coisas, adverti-los contra esses patifes e ordenar solenemente, sob pena de severo castigo, que cada súdito denuncie esses intrusos, como, aliás, é dever dos súditos, se não quiserem tornar-se cúmplices de toda a matança e tumulto que o diabo tem em mente, etc. Da mesma forma, também a autoridade espiritual deve insistir na vocação e perguntar ao intruso ou seu hospedeiro: De onde vens? Quem te enviou?, etc., como acima. E perguntar ao hospedeiro: Quem te ordenou hospedar esse intruso, ouvir sua pregação clandestina? De onde sabes que ele tem a ordem de instruir-te e que tens que aprender dele? Por que não informaste o pastor ou a nós? Por que abandonas tua Igreja, na qual foste batizado, instruído e recebeste a comunhão, e onde é teu lugar pela ordem de Deus e mergulhas na clandestinidade? Por que instituis algo novo, clandestinamente e sem teres recebido a ordem para isso? Quem te deu poder para dividir esta paróquia e provocar tumultos entre nós? Quem te ordenou desprezar teu pastor, a julgar e condená-lo à revelia, antes mesmo de ter sido ouvido ou acusado? De onde tens a autoridade para te arvorares em juiz de teu pastor, sim, inclusive em teu próprio juiz?
Pois são esses os vícios e outros mais que comete todo aquele que adere aos intrusos, e é justo que se o chame à responsabilidade. Tenho grande esperança de que, se a autoridade se empenhasse nesse sentido, isso resultaria em grande proveito, e muitas pessoas cristãs se acautelariam e ajudariam a expulsar esses patifes, caso soubessem que os intrusos constituem um perigo tão grande e que a vocação e a ordem é algo importante. Pois, caso não se insistir na vocação ou ordem, por fim, não sobrará mais Igreja em parte alguma. Pois da mesma maneira como os intrusos se [521] infiltram cá entre nós, querem causar separação em nossa Igreja e destruí-la, depois apareceriam outros intrusos nas igrejas deles, causando separação e destruindo-as. E daí uma infiltração e cisão sucederia à outra, sem fim, ou então, nada mais sobraria de qualquer Igreja na terra. É justamente isso que o diabo gostaria de conseguir e tenta por meio desses espíritos tumultuadores e intrusos.
Por isso, o procedimento é o seguinte: ou provai que fostes chamados e que tendes a ordem para pregar, ou silenciai imediatamente. Estais proibidos de pregar, porque aqui se trata de um ministério, sim, de um ministério da pregação. Ora, ninguém pode ser detentor de um ministério fora ou sem ordem e vocação. Por isso Cristo diz na parábola de Mateus 25 que o patrão não confiou os talentos a seus empregados, para negociarem com eles, antes de os ter chamado e dado a ordem de negociar. Vocatis servis, diz o texto, et negotiemini, etc. — “Convocou seus empregados”, diz ele, “e lhes ordenou que negociassem com seu dinheiro”. Que o intruso também apresente uma vocação e ordem nesse sentido, ou então, deixe o dinheiro do SENHOR em paz; do contrário será considerado ladrão e charlatão. Da mesma forma, os trabalhadores não entraram na vinha do patrão, Mateus 20[.1-16], antes de os ter contratado e lhes ter ordenado ir. Antes de receberem a ordem e a vocação, andaram ociosos o dia inteiro.
A mesma coisa diz Deus a respeito desses intrusos: “Eles correm, sem que eu os tivesse enviado; pregam, sem que eu lho tivesse ordenado” [Jr 23.21]. Ainda há que se empenhar muito esforço e trabalho para conseguir que preguem retamente e se atenham à reta doutrina os que têm o chamado e receberam a ordem legítima do próprio Deus, ou foram chamados e receberam a ordem por homens em nome de Deus. Se esse é o caso, como será quando se prega sem ordem de Deus, sim, contra a ordem e a proibição de Deus, somente por estímulo e iniciativa do diabo? Aí nenhuma pregação será bem-vinda a não ser a inspirada pelo espírito do mal, e só pode haver doutrina do diabo, por mais brilhante que seja.
Quem teve um chamado mais claro e legítimo do que Arão, o primeiro sumo sacerdote? Não obstante, caiu na idolatria e ordenou aos judeus que fizessem o bezerro de ouro[15] Posteriormente, a maioria do sacerdócio levítico se entregou à idolatria e, além disso perseguiram a Palavra de Deus e todos os verdadeiros profetas[16]. Também o rei Salomão fora chamado e confirmado de modo maravilhoso. Mesmo assim, entregou-se à idolatria na velhice[17]. Acaso os bispos e papas não têm um chamado e ordem maravilhosos? Não estão eles sentados nas cátedras dos apóstolos e no lugar de Cristo? Não obstante, todos eles são os piores inimigos do Evangelho, muito menos se pode esperar deles que ensinem corretamente e realizem verdadeiro culto a Deus.
Ora, se o diabo é capaz de enganar os mestres que o próprio Deus chamou, instituiu e ordenou, a ponto de ensinarem falsamente e perseguirem a verdade, como ensinaria algo de bom por meio dos mestres que ele impulsiona e ordenou sem e até contra a ordem de Deus [522], e não muito antes, a pura mentira diabólica? Já disse muitas vezes e tomo a dizer: Não aceitaria os bens do mundo inteiro em troca de meu título de doutor. Pois, sem dúvida, por fim eu teria que desanimar e desesperar em face da grande e pesada obra que pesa sobre mim, se eu a tivesse iniciado como intruso, sem chamado e ordem. No entanto, Deus e o mundo são minhas testemunhas de que a empreendi publicamente em meu ministério de doutor e da pregação, e assim a conduzi até agora com a graça e ajuda de Deus.
É verdade que há os que argumentam que, em 1Co 14[.30], São Paulo teria concedido a qualquer um a liberdade de pregar na comunidade e, inclusive, contestar o pregador ordenado, ao dizer: “Se o que está sentado tiver uma revelação, cale- se o primeiro”. Por isso os intrusos acreditam terem a autoridade e o direito de julgar o pregador de qualquer igreja em que entram e de pregar diferente. Isso, porém, é um grande engano. Os intrusos não observam bem o texto e tiram dele, ou melhor, introduzem nele o que querem. Na referida passagem, São Paulo fala dos profetas que devem ensinar, e não do povo que escuta. Profetas, porém, são mestres detentores do ministério da pregação na Igreja. Se assim não fosse, por que se chamaria alguém de profeta? Portanto, peça ao intruso que primeiro prove ser profeta ou mestre na Igreja à qual chega, e quem lhe confiou esse ministério. Depois disso se há de ouvi-lo, de acordo com o ensinamento de São Paulo. Se não o conseguir provar, manda-o para o diabo, que o enviou e lhe deu a ordem de usurpar um ministério da pregação alheio, numa igreja à qual também não pertence como ouvinte ou discípulo, que dirá como profeta e mestre.
Que modelo fabuloso daria isso se qualquer pessoa tivesse o direito de interromper o discurso do pastor e de começar a discutir com ele! E logo mais, um terceiro se intrometeria no debate dos dois, mandando também calar a esse segundo. E depois, ainda viria um bêbado da bodega da esquina e interviria na discussão desses três, mandando também ao terceiro calar-se. Por fim, inclusive, as mulheres quereriam fazer uso desse direito, como “a que está sentada”[18], mandando os homens calar, e depois uma mulher a outra - que algazarra, que gritaria de bodega, que festa popular daria isso! Até num chiqueiro as coisas seriam mais ordeiras do que numa igreja dessas. Que o diabo seja pregador em meu lugar! Os cegos intrusos, porém, não pensam nessas coisas. Acham que somente eles são “os que estão sentados” e não percebem que qualquer um dentre os demais [523] deveria ter o mesmo direito, e também poderia mandá-los calar. Eles próprios não sabem o que dizem, o que significa “estar sentado” ou “falar”, o que significa “profeta” ou “leigo” nessa palavra de São Paulo.
Quem quiser, leia todo o capítulo e descobrirá que nele São Paulo se refere à profecia, à instrução e pregação na comunidade ou igreja. Ele não ordena à comunidade pregar, mas está falando com os pregadores que pregam na comunidade ou na reunião. Do contrário, não poderia proibir às mulheres que preguem, pois também elas são parte da comunidade cristã. A deduzir do texto, a situação era a seguinte: na igreja, os profetas, como os legítimos pastores e pregadores, estavam sentados no meio do povo, e um ou dois deles recitavam ou liam o texto, como ainda hoje é costume, por ocasião das grandes festas, em algumas igrejas, que duas pessoas cantem o Evangelho.
Em seguida, um dos profetas, que estava na vez, passava a discursar sobre esse texto, explicando-o, a exemplo do que foram as homilias na Igreja romana. Tendo esse acabado de falar, outro podia acrescentar algo, confirmar ou explicar [ainda melhor] o que disse o precedente, como fez São Tiago em Atos 15[.13ss.], respondendo ao discurso de São Pedro, confirmando e explicando-o. Do mesmo modo procedeu São Paulo nas sinagogas, especialmente, em Antioquia da Pisídia. Lucas relata que, após a leitura da Lei, os chefes da sinagoga também permitiram que Paulo falasse. Paulo então se levantou e falou, no entanto, na qualidade de apóstolo comissionado; além disso, fora convidado pelo chefe da sinagoga e não, como intruso. Fica, pois, evidente que a expressão “estar sentado” se refere somente aos profetas e pregadores ordenados: aquele que dentre eles deveria falar, erguia-se, ou então ficava sentado, dependendo da importância do assunto.
Isso se compara a um príncipe reunido com seus conselheiros, ou a um burgomestre reunido com seus colegas conselheiros. Aí um deles se levanta e faz seu discurso e depois, outro. Por fim, aceitam unanimemente aquele que fez a melhor proposta. Assim um ajuda ao outro com seu conselho e tudo acontece de forma ordeira. No mesmo sentido, os profetas eram como que o conselho da Igreja, para ensinar a Escritura e governar e prover a comunidade. Acaso se deveria admitir que um vagabundo e estranho qualquer viesse, ou um cidadão sem mandato se infiltrasse para recriminar e instruir o burgomestre? Isso não acabaria bem. A gente deveria agarrá-lo pelo cangote e entregá-lo a mestre João[19]. Esse lhe mostraria seu devido lugar.
[524] Muito menos se deve tolerar que um intruso estranho se insinue num conselho espiritual, isso é, no ministério da pregação, ou que um leigo se arrogue a pregar em sua igreja paroquial sem ser chamado. Isso deve ser e permanecer incumbência dos profetas. Eles é que deverão cuidar da doutrina, ensinar um após o outro e sempre ajudar-se fielmente uns aos outros, de modo que tudo se desenrole de forma decente e ordeira, diz São Paulo[20]. Como, porém, as coisas podem ser feitas de modo decente e ordeiro onde cada qual interfere no ministério alheio, que não lhe foi ordenado e, se todo leigo quer levantar-se na igreja, querendo pregar?
Admira-me, porém, visto serem espiritualmente tão instruídos, por que não aduzem os exemplos onde também mulheres profetizaram, governando, desse modo, os homens, terra e gente, como Débora, em Juízes 4, que derrotou o Rei Jabim e Sísera, e governou a Israel; e a profetisa de Abel-Bete-Maaca, que viveu no tempo de Davi, conforme 2Reis 20 [sc. 2Samuel 20.13ss.]; e a profetisa Hulda, na época de Josias, em 4 Reis 22 [sc. 2Rs 22.14ss.]; e muito antes, Sara, que instruiu a seu senhor Abraão que expulsasse a Ismael com a mãe Hagar; e Deus ordenou que lhe obedecesse[21]. E outras ainda, como, por exemplo, a viúva Ana, Lc 2[.36ss.], e a virgem Maria, Lc 1[.46ss.]. Aí eles teriam argumentos e poderiam autorizar também as mulheres a pregar na Igreja. Quanto mais poderiam os homens pregar, onde e quando quisessem, segundo esses exemplos.
Não queremos discutir aqui o direito que essas mulheres do Antigo Testamento tiveram para ensinar e governar. Naturalmente não o fizeram como intrusas, sem chamado e por iniciativa religiosa própria, ou por presunção. Se assim fosse, Deus não teria confirmado seu ministério e obra com milagres e grandes feitos. No Novo Testamento, porém, o Espírito Santo ordena, através de São Paulo, que as mulheres devem silenciar na Igreja[22] ou na comunidade, e diz que isso é mandamento do SENHOR[23]. Não obstante, ele sabia perfeitamente que Joel havia anunciado que Deus iria derramar seu Espírito também sobre suas servas[24]; além disso, sabia que as quatro filhas de Filipe haviam profetizado, Atos 21[.8s.]. Na comunidade ou Igreja, porém, onde existe o ministério da pregação, elas deveriam silenciar e não pregar[25]. No mais, podem perfeitamente acompanhar as orações, o canto e dizer o “amém” ler em casa e instruir, admoestar, consolar-se mutuamente; também podem interpretar a Escritura da melhor maneira possível.
Resumindo: São Paulo não tolera a petulância e insolência de alguém intrometer-se em algum ministério alheio; cada qual observe a ordem [525] e o ofício recebido e se dedique a ele, deixando intacto e em paz o ofício do outro. No mais, pode instruir-se, ensinar, cantar, ler, explicar a não querer mais, desde que tenha o direito e autorização para isso. Se Deus quiser fazer algo especial, fora e acima dessa ordem dos ministérios e da vocação, e suscitar alguém que esteja acima dos profetas, ele o demonstrará com sinais e feitos, como falou através da jumenta e repreendeu os profetas de Baal, seu senhor[26]. Quando não fizer isso, queremos ater-nos aos ministérios e mandatos instituídos. Se [seus titulares] não ensinarem corretamente, que tens tu a ver com isso? Tu não precisas prestar contas disso.
Por essa razão, São Paulo usa mais vezes o termo “comunidade”[27] neste capítulo, fazendo certa distinção entre os profetas e o povo. Os profetas falam, a comunidade ouve. Pois diz: “Quem profetiza edifica a comunidade” [1Co 14.4], e mais abaixo: Procurai edificar a comunidade, para que tenhais plena suficiência” [v. 12]. Quem são esses que devem edificar a comunidade? Acaso não são os profetas e (na expressão dele) os que falam em línguas, isto é, os que leem e cantam o texto, enquanto a comunidade ouve? São os profetas que devem explicar o texto para a edificação da comunidade? Ora, está suficientemente claro que aqui ele ordena à comunidade que ouça e se edifique, e não à doutrina nem ao ministério da pregação. E faz mais outra distinção clara, chamando a comunidade de “leigos”, dizendo: “Se bendisseres no espírito, como poderá aquele que ocupa o lugar do leigo dizer ‘amém’, visto que não entende o que dizes? Com efeito, dás graças de maneira maravilhosa, mas o outro não é edificado” [1Co 14.16s.]. Aí se estabelece uma vez mais uma diferença entre pregador e leigo. Mas que necessidade temos de muitas palavras? O texto está aí e, também, a razão ensina que não se deve interferir em um ministério alheio.
Pois São Paulo diz: “Que falem dois ou três profetas e os outros julguem”, etc. [1Co 14.29]. Aqui não se fala de outra coisa senão dos profetas, dos quais um ou dois devem falar, enquanto os outros julgam. Quem são esses “outros”? O povo? De forma alguma! Trata-se dos outros profetas que devem auxiliar na pregação na Igreja e edificar a comunidade. Esses devem julgar e ajudar a cuidar, para que se pregue corretamente. E se um dos profetas ou pregadores conseguir expressar-se com acerto, o primeiro deve consentir e dizer: É verdade, tens razão; eu não havia entendido corretamente o assunto — como acontece em tomo de uma mesa ou em outro assunto qualquer, onde um dá razão ao outro (também em questões seculares). Da mesma forma, um deve ceder tanto mais ao outro no presente caso.
Aí se vê de que modo maravilhoso e diligente os intrusos leram as palavras de São Paulo, das quais deduzem para si o direito de se manifestarem em todas as igrejas, [526] ou seja, de agredir a todos os pregadores da cristandade inteira, julgar e ofendê-los, arvorando-se eles mesmos em pessoas ordenadas e juízes de púlpitos alheios. São verdadeiros assaltantes e assassinos os que interferem criminosa e violentamente no ministério alheio. Contra isso, São Pedro ensina em 1Pe 4[.15]: “Nenhum de vós sofra como malfeitor ou como quem se intromete em negócio alheio”.
Embora haja caído no esquecimento o costume de os profetas ou pregadores estarem sentados na igreja e falarem alternadamente (como São Paulo diz aqui), ainda restou um pequeno indício e vestígio disso no canto alternado do coro e nas leituras alternadas, cantando-se depois uma antífona, um hino ou responsório em conjunto; ou quando um pregador interpreta a leitura do outro e um terceiro, a explica ou prega sobre ela. Portanto, a maneira correta de se ensinar na Igreja seria essa referida por São Paulo. Aí um cantaria ou leria em línguas, outro profetizaria ou interpretaria, o terceiro o explicaria, mais outro, por sua vez, o confirmaria ou explicitaria melhor com citações e exemplos, como o fez São Tiago em Atos 15[.13ss.], e São Paulo em Atos 13[.14s.]. Isso seria melhor que a mera leitura da perícope, ou do que cantá-la em latim, numa língua desconhecida, como as freiras rezam o Saltério. Embora São Paulo não condenasse a glossolalia para si mesmo, não a recomenda nem ordena na igreja sem interpretação.
Não quero, porém, aconselhar a reintrodução desse procedimento e a eliminação do púlpito; antes quero defendê-lo, pois hoje as pessoas são demasiadamente intempestivas e intrometidas, e poderia insinuar-se um diabo entre pastor, pregador e capelão[28], de modo que um quisesse estar acima do outro, passando eles a brigar e ofender-se diante do povo, querendo cada qual ser o melhor. Por isso é melhor conservar o púlpito, pois aí as coisas acontecem, como ensina São Paulo, de modo decente. Basta que numa paróquia os pregadores preguem um depois do outro e, se quiserem, alternadamente nos diferentes lugares, que um deles explica à tarde ou pela manhã o que o outro recitou ou leu na matutina ou na missa, como se faz, de vez em quando, com o Evangelho e a Epístola. Pois São Paulo não insiste tanto em que se devesse adotar a mesma prática, mas em que tudo seja feito em ordem e decência, dando um exemplo. Visto que nossa prática de pregação é mais ordeira entre nosso povo louco do que aquela, queremos mantê-la.
[527] Nos tempos dos apóstolos foi fácil manter a prática de os profetas estarem sentados [no meio do povo], pois era um antigo costume de prática diária entre o disciplinado povo do sacerdócio levítico, observado desde Moisés. Mas não seria aconselhável reintroduzi-la hoje entre este povo rude, indisciplinado e insolente.
Isso a respeito do dito de São Paulo. Resumindo: os intrusos e pregadores clandestinos são apóstolos do diabo, dos quais São Paulo sempre se queixa[29], que entram nas casas e as perturbam, ensinando sempre sem saberem o que estão dizendo ou afirmando. Por isso advirto e admoesto o poder espiritual, advirto e admoesto o poder secular, advirto a todos os cristãos e a todos os súditos: acautelai-vos deles e não lhes deis ouvidos. Quem os tolera e lhes dá ouvidos, saiba que está ouvindo o maldito diabo em pessoa, do mesmo modo como fala através de uma pessoa possessa. Fiz minha parte e também falei sobre esse assunto na explicação do Salmo 82[30]. Estou desculpado. O sangue de cada um que não aceita um conselho bom e sincero recaia sobre sua cabeça[31]. Com isso encomendo, caro senhor e amigo, a vós e os seus à graça e misericórdia de Deus. A ele glória e gratidão, honra e louvor em eternidade, em Jesus Cristo, nosso amado Senhor e Salvador. AMÉM.


[1] Ein Brief D. Mart. Luthers von den Schleichern und Winkelpredigern- 1532. - WA 30/III,518-527. Tradução: Ilson Kayser.
[2] Administrador do Wartburgo.
[3] Justo Mênio (1499-1558), pastor e superintendente de Eisenach e mais tarde de Gotha.
[4] O termo “anabatista(s)”, derivado do grego, significa literalmente “o(s) que batiza(m) de novo”. Denominava-se de anabatistas um grupo de pessoas de linha entusiasta ou espiritualista. Inspiradas pela Reforma, entendiam que teriam que aprofundá-la. Um dos seus líderes era Tomás Müntzer. Entre outras peculiaridades, como inspiração direta do céu, defendiam o rebatismo e o Batismo de adultos, opondo-se ao Batismo de crianças.
[5] WA 18,85,1-101,10 (em especial, 92,5-93,18). Cf. WA30/III,510ss.
[6] WA 17/I,360,15-362,28 (cf. WA 18,96,15-98,14). V. abaixo, p. 116,33-35;121,28-31;122,12-17;146,8-13.
[7] “Sobre o Rebatismo, a dois Pastores”, cf. WA 26,144-174.
[8] WA 26,146,8s.;173,13-31.
[9] Pregadores não chamados de maneira legítima pública são “mensageiros e mestres do diabo”. (V. abaixo, p. 116,8s.,32s.;117,19s.;118,40-119,2;119,15;124,12s., 17-19), “ladrões e charlatães” (p. 118,30), “verdadeiros assaltantes e assassinos” (p. 123,15) e homens e mulheres que não os denunciam, colaboram com eles e não serão salvos (p. 117,1-5). Embora dirigido contra a visão de Roma no tocante ao sacerdócio e escrito um ano depois, faz-se necessário mencionar expressamente Von der Winkelmesse und Pfaffenweihe (“Da Missa Particular e da Consagração de Padres”), WA 38,185-256. Pois, com idêntica ênfase, Lutero ressalta o ministério e a ordenação, bem como a sua interligação indissolúvel. Só por meio da ordenação, a pessoa crente e batizada se toma “apóstolo, pregador, professor e pastor”, WA 38,230,20. As pessoas mudam, mas não o ministério, querido por Jesus Cristo e em prol da comunidade. Este ministério sempre existiu e existirá. Apenas via ordenação, a pessoa entra nele. Cf. WA 38,241,6-24. Ocorre quase uma hipostatização do ministério, contudo, para o fortalecimento da fé e da sua vivência entre o povo. Cf. W. STEIN, Das kirchliche Amt bei Luther, Wiesbaden : Steiner, 1974, p. 200.
[10] V. abaixo, p. 118,14-20.
[11] V. acima, p. 114, n. 4. Cf. também abaixo, n. 12.
[12] Depois da Guerra dos Camponeses (cf. OSel 6,273-401), ideias revolucionárias e entusiastas, no espírito de Müntzer, continuaram pululando na Turíngia. O movimento anabatista causava muitos problemas a Justo Mênio, superintendente de Eisenach. Para combatê-lo, escreveu um livro intitulado “A Doutrina e o Segredo dos Anabatistas”, dedicado ao duque Filipe de Hesse, a fim de incentivá-lo a tomar medidas enérgicas contra os anabatistas. Isso em maio de 1530. Mênio havia submetido seu manuscrito ao crivo de Lutero, que lhe deu apoio e o prefaciou. O texto desse prefácio encontra-se em WA 30/II,211-214.
[13] Cf. Lc 10.11.
[14] Cf. Jo 8.44.
[15] Cf. Êx 32.
[16] Cf., p. ex., 1Sm 2.12ss.
[17] Cf. 1Rs 11.4.
[18] Cf. 1Co 14.30.
[19] Mestre João designa, normalmente, a figura do carrasco, o executor das sentenças. No presente caso, porém, parece ser empregado no sentido de disciplinador, o encarregado da disciplina.
[20] 1Co 14.40.
[21] Cf. Gn 21.9ss.
[22] Cf. 1Co 14.34.
[23] Talvez Lutero tivesse em mente a passagem de 1Co 7.10, na qual Paulo cita um expresso mandamento de Deus para a mulher.
[24] Cf. Jl 2.28s.
[25] Cf. 1Tm2.11s.
[26] Cf. Nm 22.21 ss.
[27] Lutero traduz o termo grego ekklesia quase sempre como “comunidade”, e não como “igreja”, como fazem Almeida, Bíblia de Jerusalém e Matos Soares.
[28] Capelão é um pastor adjunto do pároco.
[29] Cf. Tt 1.10.
[30] Cf. o texto em WA31/I,189-218.
[31] Caso não se retratassem, os anabatistas podiam ser condenados à morte.


Obras Selecionadas de Lutero, v. 7, pp 25 a 36
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