terça-feira, 10 de setembro de 2019

Ministério - o testemunho de Lutero

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O testemunho de Lutero concernente ao sacerdócio dos crentes e ao ministério eclesiástico bem como ao episcopado evangélico


É notória a redescoberta do sacerdócio dos crentes por Lutero. Já na sua histórica preleção sobre a Carta aos Romanos (1515/16), ele faz alusão a ele[1]. Quatro anos depois, em “Um Sermão a respeito do Novo Testamento, Isto É, a respeito da Santa Missa” (1520), refere-se literalmente ao sacerdócio dos crentes[2]. Em seguida, em “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão” (1520), aprofunda a questão. Perante a postura antirreforma de Roma, Lutero assevera o sacerdócio dos crentes como veículo da Reforma da Igreja[3]. A vivência do Batismo desencadeia a renovação da Igreja em doutrina e prática[4].
Lutero alicerça o sacerdócio dos crentes na fé em Jesus Cristo. A pessoa crente exercita por si só o verdadeiro sacerdócio[5]. Nessa fé, ela tem livre acesso a Deus, não precisando de sacerdote. A pessoa crente em Jesus Cristo é, ela própria, sacerdote e sacerdotisa. Conforme Lutero, as pessoas crentes e batizadas “têm todos [todas] o mesmo Batismo, Palavra, fé, Cristo, Deus e tudo mais”[6]. Acrescenta ainda, em “Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores — Fundamento e Razão da Escritura” (1523)[7], que os crentes e batizados, todos juntos, constituem a guarda da pureza da pregação evangélica e da sua execução.
Tal visão do sacerdócio dos crentes e batizados é o ponto de partida de Lutero para a renovação evangélica da Igreja pelas bases comunitárias, com consequências realmente revolucionárias, no sentido próprio do termo. Contudo, ele deixa de retomá-lo quanto à concretização localizada da mesma[8]. Doravante volta poucas vezes a ele e sem destacá-lo[9].
Lutero sempre mantém o ministério eclesiástico, todavia, no decorrer do tempo, fundamenta de maneira diversa o seu exercício concreto. Em “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão” e “Do Cativeiro Babilônico da Igreja” (1520) o entende como oriundo da delegação que a assembleia da comunidade efetua[10]. No segundo escrito, chama de invenção papal o caráter sacramental da ordenação[11], desnecessária para a salvação[12]. O que não o impede de afirmar, no primeiro, que o ministério é instituído por Deus para “dirigir o povo e a comunidade com a pregação e os sacramentos”[13]. O que reforça em “Como 10 Instituir Ministros na Igreja” (1523), com a sua nítida distinção entre “sacerdote”, ou seja, o crente batizado, e “ministro”, isto é, o encarregado do ministério eclesiástico, o pastor, o pároco[14]. A luta acirrada contra os entusiastas obriga Lutero a insistir no modo ordenado do ministério. Faz isto de forma palpitante na “Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos” (1532)[15]. Acaba afirmando em “Dos Concílios e da Igreja” (1539) que, para o bem da comunidade, o ministério como “instituição de Cristo” é uma necessidade[16].
Independentemente do contexto momentâneo e dos realces correspondentes, Lutero caracteriza o ministério eclesiástico assim: é o trabalho de pregar a dupla Palavra de Deus e de ministrar os sacramentos[17]. A sua finalidade é edificar a comunidade localizada e de forma concreta[18]. Ele acontece publicamente, em concordância e convivência com uma determinada comunidade[19] e em nome da mesma[20]. No entanto, não a mando da comunidade, mas do próprio Cristo, segundo Ef 4.11[21]. Da execução deste mandato emana uma dignidade ímpar[22]. O ministério eclesiástico é um 5 só, embora possa ter desdobramentos funcionais (p. ex., em forma de episcopado). Entra-se nele através da ordenação na comunidade de Wittenberg (reunida em nome de Jesus Cristo) e da vocação pela comunidade com a qual o ordenado cooperará[23]. Para Lutero, ordenação e vocação são interligadas e inseparáveis[24]. A ordenação confirma a vocação de determinada congregação, envia ao serviço junto à Palavra de Deus na mesma e abençoa com a dádiva do Espírito Santo, que toma efetivo o empenho do ministério[25]. Conferido, assim, o ministério eclesiástico não acrescenta nenhuma superioridade espiritual ou o que o valha de caráter indelével[26]. O encarregado dele, continuando igual a qualquer outro crente batizado, tem somente uma função específica, que o diferencia, mas em absoluto o eleva. Inclusive, pode perdê-la e a perde incontinenti quando não a exerce mais[27]. Inexiste ministério eterno[28], nem mesmo vitalício.
Para Lutero, bispo e ministro (=pregador e pastor) são “uma coisa só”[29]. O episcopado, percebido pela Palavra de Deus e durante a história da Igreja, é meramente uma variante do ministério eclesiástico de todos os tempos e lugares[30]. Isso fica patente no seu escrito “Exemplo de Ordenação de um Legítimo Bispo Cristão”[31]. Enquanto o ministério eclesiástico atua mais localmente, o bispo se dedica a áreas maiores. É bispo itinerante e, como tal, é o ministro dos outros ministros[32]. O que demanda certos regulamentos, contudo não fundamenta nenhuma hierarquia no desempenho do ministério. Na medida em que lhe parece irreversível a ruptura com Roma, Lutero se 10 preocupa com essa questão, não apenas por causa da ordenação, mas também por ter claro que a Igreja precisa se organizar por seus próprios meios[33]. Razão pela qual ele participa pessoalmente na instalação de dois bispos[34].
A. Baeske


[1] “Toda palavra que sair da boca de um superior da Igreja ou de um homem justo e santo é palavra de Cristo, que diz: ‘Quem vos ouve, ouve a mim”’ (Lc 10.16). Cf. WA 56,25 1,25s.
[2] Cf. OSel 2,268 (27).
[3] Cf. OSel 2,282-285.
[4] Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, in: OSel. 2, 282s.
[5] Cf. “Um Sermão a respeito do Novo Testamento, Isto É, a respeito da Santa Missa”, in: OSel 2, 269 (28.). “Se eu creio, também sou sacerdote. Quem me poderá negar isso? Se é a tonsura que nos toma sacerdotes, também podemos fazer sacerdote um ganso ou um asno... Por isso, a fé traz consigo o sacerdócio. É uma coisa descomunal o fato de todos sermos sacerdotes, os bispos não conseguem digerir isso muito bem”. WA 10/III,398,24-29.
[6] Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, in: OSel 2,320.
[7] V. acima, p. 28-36. Cf. também abaixo, p. 92,33-105,12.
[8] Será que Lutero pensa que as pessoas ainda não estão suficientemente cientes do seu sacerdócio? Posição idêntica que toma no escrito “Missa Alemã e Ordem do Culto” quando se refere à “ordem verdadeiramente evangélica”, a qual abraçam “os que querem ser cristãos com seriedade”, afirmando que “ainda não tenho gente... para isso, nem vejo muitos que estão inclinados para isso”. Cf. neste vol., abaixo, p. 179,40-180,4. Cf. para a problemática em apreço, H.-M. BARTH, Einander Priester sein. Allgemeines Priestertum in ökumenischer Perspektive, Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1990. O autor constata “falta de precisão” e “nebulosidades” na abordagem de Lutero (p. 46ss.) e “contradições na prática reformatória” (p. 48ss.). De resto, Barth relaciona as referências decisivas de Lutero ao sacerdócio dos crentes (p. 29s.) e as comenta (p. 31ss.).
[9] Cf. H.-M. BARTH, Einander Priester sein. Allgemeines Priestertum in ökumenischer Perspektive, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990, p. 48.
[10] OSel 2,282,414,417.
[11] OSel 2,410.
[12] OSel 2,413.
[13] OSel 2,312.
[14] V. abaixo, p. 105,1-12. “É verdade, todos os cristãos são sacerdotes, mas nem todos são pastores. Pois além de ser cristão e sacerdote, tem que ter também um ministério e uma paróquia a ele confiada. A vocação e a ordem fazem pastores e pregadores.” Cf. WA 31/I,211,17-20.
[15] V. abaixo, p. 115-124.
[16] OSel 3,413.
[17] V., p. ex., WA 38,187,10s.
[18] V., p. ex., WA 38,222,26s.; 240,39-241,1; 254,2.
[19] V. abaixo, p. 102,36-103,10.
[20] V. abaixo, p. 103,2-9.
[21] O ministério pertence a Deus, não à comunidade, nem ao papa. As pessoas ordenadas são “colheres, mão do Senhor. Nós [somos] a colher, ele dá de beber através de nós, [dá] comida e bebida do Senhor”. Cf. WA41,455,4s; cf. o sermão todo, em WA 41,454,17-459,11.
[22] “Pois um pregador não precisa orar o Pai nosso, nem buscar perdão dos pecados depois de haver pregado (se ele for um pregador de verdade) e, sim, deverá dizer com Jeremias e gloriar: ‘Senhor, tu sabes que o que saiu de minha boca é correto e agradável a ti.’ Sim, deverá dizer desafiadoramente com São Paulo e todos os apóstolos e profetas: ‘Haec dixit Dominus — foi o próprio Senhor que disse isso.’ E mais: ‘Eu fui apóstolo e profeta de Jesus Cristo nesta prédica.’ Aqui não é necessário e até mesmo não é bom pedir perdão dos pecados, como se tivesse ensinado erroneamente. Pois é a Palavra de Deus e não a minha, que Deus não me haverá de perdoar nem pode perdoar e, sim, confirmá-la, louvar e dizer: ‘Ensinaste bem. Porque eu falei através de ti e a palavra é minha.’ Quem não pode gloriar-se disso em sua prédica, que desista de pregar, pois certamente nega e blasfema a Deus”. WA 51,517,5-16.
[23] Lutero não identifica ordenação com vocação. No ano de 1525, realiza a primeira ordenação em Wittenberg. Cf. WA 16,226, n. 6; WA 17/I,XXXVIII; WA 38,403. O que vira praxe após 1530, sobretudo, quando, em 1535, o príncipe-eleitor da Saxônia, João Frederico, decreta a introdução da ordenação para os pregadores recém-formados. WA 38,407.
[24] WA 38,423-433; WA 38,236,30-32. Lutero é contrário à ordenação absoluta, insiste, fundamenta e propaga a ordenação relativa. V. W. STEIN, Das kirchliche Amt bei Luther, Wiesbaden : Steiner, 1974, p. 187ss.
[25] WA 38,424; 427,19-31; 431,9-35; 433,12s.; WA 28,466,11-471,4.
[26] Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, in: OSel 2,283; Do Cativeiro Babilônico da Igreja”, in: OSel 2,418; v. também “Como Instituir Ministros na Igreja", abaixo, p. 84,1-8;87,29-37;106,15s. Quanto à importância da ordenação para Lutero, cf. H. LIEBERG, Amt und Ordination bei Luther und Melanchthon, Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, p. 168- 232, que descobre, apresenta e interpreta vasto material de Lutero.
[27] V. abaixo, p. 106,9-22. “Aí não distinguimos o sacerdócio e, sim, o ministério do serviço [à comunidade], para que se sirva com consolo, que se absolva, etc. No mais, todos somos iguais quanto ao sacerdócio. Eu não tenho um batismo melhor do que uma criança. Assim, portanto, como alguém tem que ser um homem antes de tomar uma esposa, assim um pregador, um bispo tem que ser um sacerdote. O papa ou o bispo não faz um sacerdote, é preciso sê-lo antes. Se, porém, agora é sacerdote, acresce o ministério e isso faz uma diferença. Se não posso ou não quero mais pregar, volto ao povo comum, sou como tu, e outro passa a pregar. Nem todos podemos ter o ministério. Assim somos, eu e outros, ministros em decorrência do ministério, não sacerdotes, como os faz o papa. Ele mente, não cria sacerdotes e, sim, manda fazer pregadores, batizadores, que excomungam, absolvem”. (WA 41,209,5-16).
[28] 0 sacerdócio dos crentes é eterno, o ministério, temporário. Fica claro o serviçalismo deste em relação àquele. Cf. J. HEUBACH, Das Priestertum der Gläubigen und das Amt der Kirche, in: Jahrbuch des Martin-Luther-Bundes, Erlangen, 1972, vol. 13, p. 36ss.
[29] WA 7,630,34-631,10. V. “Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência” (1521), in: OSel 6,106,1-13. V. também abaixo, p. 106,33-35 e 110,26-31 (1523). WA 19,600,28-35 (1526).
[30] Lutero sustenta isso desde 1519; cf. “Comentário de Lutero sobre a 13a Tese a respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor)”, in: OSel 1,318s.; “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, in: OSel 2,312 e WA 7,630,34-631,33, referindo-se sempre à posição do pai da Igreja, Gerônimo, que ressaltava: “a ecumene é maior do que Roma”, quer dizer, não há supremacia do bispo de Roma sobre os demais bispos, e estes, existentes em cada cidade, são iguais entre si [veja Gerônimo como fiador teológico neste assunto também em WA 50,84,24-87,29;339-443; WA TR 3,642,34- 643,18, nº 3829 e WA 54,226-229; 243s.] e WA 8,426,26-431,20, interpretando, especialmente, Tt 1.5- 7, 1Pe 5.1-4 (cf. WA 12,386,14-392,17) e Lc 22.25s. Em 1522, Lutero escreve Wider den falsch genannten geistlichen Stand des Papstes und der Bischöfe (“Contra o estamento do papa e dos bispos, falsamente chamado de espiritual”) (WA 10/II,105-158), visando à abolição do papado, à introdução de um episcopado evangélico e à conversão de bispos papais em bispos evangélicos, que homologam e instalam os ministros vocacionados e eleitos pelas comunidades; os bispos visitam ministros e comunidades e exercem, junto a eles, a disciplina doutrinária, conforme o Evangelho redescoberto. Um ano depois, retoma a questão, em parte, no escrito “Como Instituir Ministros na Igreja” (v. abaixo, p. 82- 113). Em 1527/28, Lutero faz preleções sobre Tt 1.5-10 (WA 25,16,4-31,22) e 1 Tm 3.1-7 (WA 26,49,5-59,14). Define o trabalho do bispo como serviço fraternal e não como domínio, consistindo na pregação, na defesa contra falsa doutrina e no cuidado por fé e vida da(s) comunidade(s), ou seja, visitação, exortação e eventual excomunhão. Ainda em 1528, Lutero desdobra a incumbência episcopal da visitação (cf. “Instrução dos Visitadores aos Párocos”, abaixo p. 259-311. No contexto da Dieta de Augsburgo (1530), repete por meio de Vermahnung an die Geistlichen, versammelt auf dem Reichstag zu Augsburg (“Exortação aos religiosos reunidos na Dieta de Augsburgo”) (WA 30/II,268-356) o que já tinha dito em “Contra o estamento do papa e dos bispos, falsamente chamado de espiritual”, caso os bispos “deixem... pregar livremente o Evangelho” (340,7), “o único consolo das nossas almas, o Evangelho puro e livre” (355,16s.), então, se os respeitará na sua função de autoridades civis e de protetores exteriores da Igreja. Lutero volta a esse ponto, para ele central, em 1537, nos “Artigos de Esmalcalde”, in: LC, p. 337,1. Cf., para o complexo todo, M. BRECHT (ed.), Martin Luther und das Bischofsamt. Stuttgart : Calwer, 1990. Também a já clássica abordagem dogmática de P. BRUNNER, Vom Amt des Bischofs, in: Pro Ecclesia - Gesammelte Aufsätze zur dogmatischen Theologie, vol. 1, Berlin/ Hamburg : Lutherisches Verlagshaus, 1962, p. 235ss., e a abordagem histórica contundente de E. BIZER, Luther und der Papst, in: Theologische Existenz Heute, vol. 69, München: Chr. Kaiser, 1958.
[31] V. abaixo, p. 126-150.
[32] Cf. abaixo, p. 110,29-31; 111,1-2; 144,19-23. “... e lhe recomendamos o ministério de pregar o Evangelho e de ministrar os sacramentos. E do modo como Paulo ordenou a Tito [1.5ss.] que instituísse presbíteros [pregadores, pastores] para ensinar e governar as Igrejas, saiba o ora ordenado que também a ele se ordena, pela palavra apostólica que, no exercício desta função, ordene sacerdotes [presbíteros/pastores] para ensinarem e governarem as Igrejas, e que observe com grande atenção sua doutrina e sua conduta, e que esteja lembrado que lhe é ordenado pelo Filho de Deus [Lc 22.32]: ‘E tu, quando te converteres, fortalece os teus irmãos’”. Cf. WA Br 11,156,24-30, nº 4141.
[33] Cf. abaixo, p. 107,22-108,19;145,29-148,8.
[34] Cf. abaixo, p. 148,1 e WA Br 11,156s., nº 4141.


Obras Selecionadas de Lutero, v. 7, pp 25 a 36
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