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O testemunho de Lutero concernente ao sacerdócio dos crentes e ao
ministério eclesiástico bem como ao episcopado evangélico
É notória a redescoberta do sacerdócio dos crentes por
Lutero. Já na sua histórica preleção sobre a Carta aos Romanos (1515/16), ele
faz alusão a ele[1].
Quatro anos depois, em “Um Sermão a respeito do Novo Testamento, Isto É, a
respeito da Santa Missa” (1520), refere-se literalmente ao sacerdócio dos
crentes[2].
Em seguida, em “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do
Estamento Cristão” (1520), aprofunda a questão. Perante a postura antirreforma
de Roma, Lutero assevera o sacerdócio dos crentes como veículo da Reforma da
Igreja[3].
A vivência do Batismo desencadeia a renovação da Igreja em doutrina e prática[4].
Lutero alicerça o sacerdócio dos crentes na fé em Jesus
Cristo. A pessoa crente exercita por si só o verdadeiro sacerdócio[5].
Nessa fé, ela tem livre acesso a Deus, não precisando de sacerdote. A pessoa
crente em Jesus Cristo é, ela própria, sacerdote e sacerdotisa. Conforme
Lutero, as pessoas crentes e batizadas “têm todos [todas] o mesmo Batismo,
Palavra, fé, Cristo, Deus e tudo mais”[6].
Acrescenta ainda, em “Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade
Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores —
Fundamento e Razão da Escritura” (1523)[7],
que os crentes e batizados, todos juntos, constituem a guarda da pureza da
pregação evangélica e da sua execução.
Tal visão do sacerdócio dos crentes e batizados é o ponto de
partida de Lutero para a renovação evangélica da Igreja pelas bases
comunitárias, com consequências realmente revolucionárias, no sentido próprio
do termo. Contudo, ele deixa de retomá-lo quanto à concretização localizada da
mesma[8].
Doravante volta poucas vezes a ele e sem destacá-lo[9].
Lutero sempre mantém o ministério eclesiástico, todavia, no
decorrer do tempo, fundamenta de maneira diversa o seu exercício concreto. Em
“À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão” e
“Do Cativeiro Babilônico da Igreja” (1520) o entende como oriundo da delegação
que a assembleia da comunidade efetua[10].
No segundo escrito, chama de invenção papal o caráter sacramental da ordenação[11],
desnecessária para a salvação[12].
O que não o impede de afirmar, no primeiro, que o ministério é instituído por
Deus para “dirigir o povo e a comunidade com a pregação e os sacramentos”[13].
O que reforça em “Como 10 Instituir Ministros na Igreja” (1523), com a sua
nítida distinção entre “sacerdote”, ou seja, o crente batizado, e “ministro”,
isto é, o encarregado do ministério eclesiástico, o pastor, o pároco[14].
A luta acirrada contra os entusiastas obriga Lutero a insistir no modo ordenado
do ministério. Faz isto de forma palpitante na “Carta do Dr. Mart. Lutero sobre
os Intrusos e Pregadores Clandestinos” (1532)[15].
Acaba afirmando em “Dos Concílios e da Igreja” (1539) que, para o bem da
comunidade, o ministério como “instituição de Cristo” é uma necessidade[16].
Independentemente do contexto momentâneo e dos realces
correspondentes, Lutero caracteriza o ministério eclesiástico assim: é o
trabalho de pregar a dupla Palavra de Deus e de ministrar os sacramentos[17].
A sua finalidade é edificar a comunidade localizada e de forma concreta[18].
Ele acontece publicamente, em concordância e convivência com uma determinada comunidade[19]
e em nome da mesma[20].
No entanto, não a mando da comunidade, mas do próprio Cristo, segundo Ef 4.11[21].
Da execução deste mandato emana uma dignidade ímpar[22].
O ministério eclesiástico é um 5 só, embora possa ter desdobramentos funcionais
(p. ex., em forma de episcopado). Entra-se nele através da ordenação na
comunidade de Wittenberg (reunida em nome de Jesus Cristo) e da vocação pela
comunidade com a qual o ordenado cooperará[23].
Para Lutero, ordenação e vocação são interligadas e inseparáveis[24].
A ordenação confirma a vocação de determinada congregação, envia ao serviço
junto à Palavra de Deus na mesma e abençoa com a dádiva do Espírito Santo, que
toma efetivo o empenho do ministério[25].
Conferido, assim, o ministério eclesiástico não acrescenta nenhuma
superioridade espiritual ou o que o valha de caráter indelével[26].
O encarregado dele, continuando igual a qualquer outro crente batizado, tem
somente uma função específica, que o diferencia, mas em absoluto o eleva.
Inclusive, pode perdê-la e a perde incontinenti quando não a exerce mais[27].
Inexiste ministério eterno[28],
nem mesmo vitalício.
Para Lutero, bispo e ministro (=pregador e pastor) são “uma
coisa só”[29].
O episcopado, percebido pela Palavra de Deus e durante a história da Igreja, é
meramente uma variante do ministério eclesiástico de todos os tempos e lugares[30].
Isso fica patente no seu escrito “Exemplo de Ordenação de um Legítimo Bispo
Cristão”[31].
Enquanto o ministério eclesiástico atua mais localmente, o bispo se dedica a
áreas maiores. É bispo itinerante e, como tal, é o ministro dos outros
ministros[32].
O que demanda certos regulamentos, contudo não fundamenta nenhuma hierarquia no
desempenho do ministério. Na medida em que lhe parece irreversível a ruptura
com Roma, Lutero se 10 preocupa com essa questão, não apenas por causa da
ordenação, mas também por ter claro que a Igreja precisa se organizar por seus
próprios meios[33].
Razão pela qual ele participa pessoalmente na instalação de dois bispos[34].
A. Baeske
[1]
“Toda palavra que sair da boca de um superior da Igreja ou de um homem justo e
santo é palavra de Cristo, que diz: ‘Quem vos ouve, ouve a mim”’ (Lc 10.16).
Cf. WA 56,25 1,25s.
[2]
Cf. OSel 2,268 (27).
[3]
Cf. OSel 2,282-285.
[4]
Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”,
in: OSel. 2, 282s.
[5]
Cf. “Um Sermão a respeito do Novo Testamento, Isto É, a respeito da Santa
Missa”, in: OSel 2, 269 (28.). “Se eu creio, também sou sacerdote. Quem me
poderá negar isso? Se é a tonsura que nos toma sacerdotes, também podemos fazer
sacerdote um ganso ou um asno... Por isso, a fé traz consigo o sacerdócio. É
uma coisa descomunal o fato de todos sermos sacerdotes, os bispos não conseguem
digerir isso muito bem”. WA 10/III,398,24-29.
[6]
Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”,
in: OSel 2,320.
[7]
V. acima, p. 28-36. Cf. também abaixo, p. 92,33-105,12.
[8]
Será que Lutero pensa que as pessoas ainda não estão suficientemente cientes do
seu sacerdócio? Posição idêntica que toma no escrito “Missa Alemã e Ordem do
Culto” quando se refere à “ordem verdadeiramente evangélica”, a qual abraçam
“os que querem ser cristãos com seriedade”, afirmando que “ainda não tenho gente...
para isso, nem vejo muitos que estão inclinados para isso”. Cf. neste vol.,
abaixo, p. 179,40-180,4. Cf. para a problemática em apreço, H.-M. BARTH,
Einander Priester sein. Allgemeines Priestertum in ökumenischer Perspektive,
Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1990. O autor constata “falta de
precisão” e “nebulosidades” na abordagem de Lutero (p. 46ss.) e “contradições
na prática reformatória” (p. 48ss.). De resto, Barth relaciona as referências
decisivas de Lutero ao sacerdócio dos crentes (p. 29s.) e as comenta (p.
31ss.).
[9]
Cf. H.-M. BARTH, Einander Priester sein. Allgemeines Priestertum in
ökumenischer Perspektive, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990, p. 48.
[10]
OSel 2,282,414,417.
[11]
OSel 2,410.
[12]
OSel 2,413.
[13]
OSel 2,312.
[14]
V. abaixo, p. 105,1-12. “É verdade, todos os cristãos são sacerdotes, mas nem
todos são pastores. Pois além de ser cristão e sacerdote, tem que ter também um
ministério e uma paróquia a ele confiada. A vocação e a ordem fazem pastores e
pregadores.” Cf. WA 31/I,211,17-20.
[15]
V. abaixo, p. 115-124.
[16]
OSel 3,413.
[17]
V., p. ex., WA 38,187,10s.
[18]
V., p. ex., WA 38,222,26s.; 240,39-241,1; 254,2.
[19]
V. abaixo, p. 102,36-103,10.
[20]
V. abaixo, p. 103,2-9.
[21]
O ministério pertence a Deus, não à comunidade, nem ao papa. As pessoas
ordenadas são “colheres, mão do Senhor. Nós [somos] a colher, ele dá de beber
através de nós, [dá] comida e bebida do Senhor”. Cf. WA41,455,4s; cf. o sermão
todo, em WA 41,454,17-459,11.
[22]
“Pois um pregador não precisa orar o Pai nosso, nem buscar perdão dos pecados
depois de haver pregado (se ele for um pregador de verdade) e, sim, deverá dizer
com Jeremias e gloriar: ‘Senhor, tu sabes que o que saiu de minha boca é
correto e agradável a ti.’ Sim, deverá dizer desafiadoramente com São Paulo e
todos os apóstolos e profetas: ‘Haec dixit Dominus — foi o próprio Senhor que
disse isso.’ E mais: ‘Eu fui apóstolo e profeta de Jesus Cristo nesta prédica.’
Aqui não é necessário e até mesmo não é bom pedir perdão dos pecados, como se
tivesse ensinado erroneamente. Pois é a Palavra de Deus e não a minha, que Deus
não me haverá de perdoar nem pode perdoar e, sim, confirmá-la, louvar e dizer:
‘Ensinaste bem. Porque eu falei através de ti e a palavra é minha.’ Quem não
pode gloriar-se disso em sua prédica, que desista de pregar, pois certamente
nega e blasfema a Deus”. WA 51,517,5-16.
[23]
Lutero não identifica ordenação com vocação. No ano de 1525, realiza a primeira
ordenação em Wittenberg. Cf. WA 16,226, n. 6; WA 17/I,XXXVIII; WA 38,403. O que
vira praxe após 1530, sobretudo, quando, em 1535, o príncipe-eleitor da
Saxônia, João Frederico, decreta a introdução da ordenação para os pregadores
recém-formados. WA 38,407.
[24]
WA 38,423-433; WA 38,236,30-32. Lutero é contrário à ordenação absoluta,
insiste, fundamenta e propaga a ordenação relativa. V. W. STEIN, Das kirchliche
Amt bei Luther, Wiesbaden : Steiner, 1974, p. 187ss.
[25]
WA 38,424; 427,19-31; 431,9-35; 433,12s.; WA 28,466,11-471,4.
[26]
Cf. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”,
in: OSel 2,283; Do Cativeiro Babilônico da Igreja”, in: OSel 2,418; v. também
“Como Instituir Ministros na Igreja", abaixo, p. 84,1-8;87,29-37;106,15s.
Quanto à importância da ordenação para Lutero, cf. H. LIEBERG, Amt und
Ordination bei Luther und Melanchthon, Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht,
1962, p. 168- 232, que descobre, apresenta e interpreta vasto material de
Lutero.
[27]
V. abaixo, p. 106,9-22. “Aí não distinguimos o sacerdócio e, sim, o ministério
do serviço [à comunidade], para que se sirva com consolo, que se absolva, etc.
No mais, todos somos iguais quanto ao sacerdócio. Eu não tenho um batismo
melhor do que uma criança. Assim, portanto, como alguém tem que ser um homem
antes de tomar uma esposa, assim um pregador, um bispo tem que ser um
sacerdote. O papa ou o bispo não faz um sacerdote, é preciso sê-lo antes. Se,
porém, agora é sacerdote, acresce o ministério e isso faz uma diferença. Se não
posso ou não quero mais pregar, volto ao povo comum, sou como tu, e outro passa
a pregar. Nem todos podemos ter o ministério. Assim somos, eu e outros,
ministros em decorrência do ministério, não sacerdotes, como os faz o papa. Ele
mente, não cria sacerdotes e, sim, manda fazer pregadores, batizadores, que
excomungam, absolvem”. (WA 41,209,5-16).
[28]
0 sacerdócio dos crentes é eterno, o ministério, temporário. Fica claro o
serviçalismo deste em relação àquele. Cf. J. HEUBACH, Das Priestertum der
Gläubigen und das Amt der Kirche, in: Jahrbuch des Martin-Luther-Bundes,
Erlangen, 1972, vol. 13, p. 36ss.
[29]
WA 7,630,34-631,10. V. “Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve
obediência” (1521), in: OSel 6,106,1-13. V. também abaixo, p. 106,33-35 e
110,26-31 (1523). WA 19,600,28-35 (1526).
[30]
Lutero sustenta isso desde 1519; cf. “Comentário de Lutero sobre a 13a Tese a
respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor)”, in: OSel 1,318s.; “À
Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, in:
OSel 2,312 e WA 7,630,34-631,33, referindo-se sempre à posição do pai da
Igreja, Gerônimo, que ressaltava: “a ecumene é maior do que Roma”, quer dizer,
não há supremacia do bispo de Roma sobre os demais bispos, e estes, existentes
em cada cidade, são iguais entre si [veja Gerônimo como fiador teológico neste
assunto também em WA 50,84,24-87,29;339-443; WA TR 3,642,34- 643,18, nº 3829 e
WA 54,226-229; 243s.] e WA 8,426,26-431,20, interpretando, especialmente, Tt
1.5- 7, 1Pe 5.1-4 (cf. WA 12,386,14-392,17) e Lc 22.25s. Em 1522, Lutero
escreve Wider den falsch genannten geistlichen Stand des Papstes und der
Bischöfe (“Contra o estamento do papa e dos bispos, falsamente chamado de
espiritual”) (WA 10/II,105-158), visando à abolição do papado, à introdução de
um episcopado evangélico e à conversão de bispos papais em bispos evangélicos,
que homologam e instalam os ministros vocacionados e eleitos pelas comunidades;
os bispos visitam ministros e comunidades e exercem, junto a eles, a disciplina
doutrinária, conforme o Evangelho redescoberto. Um ano depois, retoma a
questão, em parte, no escrito “Como Instituir Ministros na Igreja” (v. abaixo,
p. 82- 113). Em 1527/28, Lutero faz preleções sobre Tt 1.5-10 (WA
25,16,4-31,22) e 1 Tm 3.1-7 (WA 26,49,5-59,14). Define o trabalho do bispo como
serviço fraternal e não como domínio, consistindo na pregação, na defesa contra
falsa doutrina e no cuidado por fé e vida da(s) comunidade(s), ou seja,
visitação, exortação e eventual excomunhão. Ainda em 1528, Lutero desdobra a
incumbência episcopal da visitação (cf. “Instrução dos Visitadores aos
Párocos”, abaixo p. 259-311. No contexto da Dieta de Augsburgo (1530), repete
por meio de Vermahnung an die Geistlichen, versammelt auf dem Reichstag zu
Augsburg (“Exortação aos religiosos reunidos na Dieta de Augsburgo”) (WA
30/II,268-356) o que já tinha dito em “Contra o estamento do papa e dos bispos,
falsamente chamado de espiritual”, caso os bispos “deixem... pregar livremente
o Evangelho” (340,7), “o único consolo das nossas almas, o Evangelho puro e
livre” (355,16s.), então, se os respeitará na sua função de autoridades civis e
de protetores exteriores da Igreja. Lutero volta a esse ponto, para ele
central, em 1537, nos “Artigos de Esmalcalde”, in: LC, p. 337,1. Cf., para o
complexo todo, M. BRECHT (ed.), Martin Luther und das Bischofsamt. Stuttgart :
Calwer, 1990. Também a já clássica abordagem dogmática de P. BRUNNER, Vom Amt
des Bischofs, in: Pro Ecclesia - Gesammelte Aufsätze zur dogmatischen
Theologie, vol. 1, Berlin/ Hamburg : Lutherisches Verlagshaus, 1962, p. 235ss.,
e a abordagem histórica contundente de E. BIZER, Luther und der Papst, in:
Theologische Existenz Heute, vol. 69, München: Chr. Kaiser, 1958.
[31]
V. abaixo, p. 126-150.
[32]
Cf. abaixo, p. 110,29-31; 111,1-2; 144,19-23. “... e lhe recomendamos o
ministério de pregar o Evangelho e de ministrar os sacramentos. E do modo como
Paulo ordenou a Tito [1.5ss.] que instituísse presbíteros [pregadores,
pastores] para ensinar e governar as Igrejas, saiba o ora ordenado que também a
ele se ordena, pela palavra apostólica que, no exercício desta função, ordene
sacerdotes [presbíteros/pastores] para ensinarem e governarem as Igrejas, e que
observe com grande atenção sua doutrina e sua conduta, e que esteja lembrado
que lhe é ordenado pelo Filho de Deus [Lc 22.32]: ‘E tu, quando te converteres,
fortalece os teus irmãos’”. Cf. WA Br 11,156,24-30, nº 4141.
[33]
Cf. abaixo, p. 107,22-108,19;145,29-148,8.
[34]
Cf. abaixo, p. 148,1 e WA Br 11,156s., nº 4141.
Obras Selecionadas de
Lutero, v. 7, pp 25 a 36
Este livro completo e todos os outros da coleção, podem ser comprados na Editora Concórdia (https://www.editoraconcordia.com.br)
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