sábado, 7 de setembro de 2019

Direito e Autoridade de uma Assembleia


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Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Crista de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores — Fundamento e Razão da Escritura


1523

Introdução

Este escrito foi preparado por Lutero em meio a uma situação em que fora desafiado a externar-se acerca das consequências do Evangelho para a edificação de uma comunidade cristã. As bases teológicas para a Reforma já tinham sido colocadas no ano de 1520, com uma série de escritos que causaram grande impacto. De especial importância para o escrito que segue, foi a noção de sacerdócio geral de todas as pessoas crentes, desenvolvida repetidas vezes nas publicações daquele ano. “Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores — Fundamento e Razão da Escritura” se localiza na trajetória de vida do reformador em um momento no qual, depois de alguns meses, retornado a Wittenberg do refúgio no castelo de Wartburgo, se ocupava intensivamente com as implicações práticas da Reforma para as comunidades. A comunidade de Leisnig, localizada no Eleitorado da Saxônia a meio caminho entre Leipzig e Dresden, solicitara a Lutero uma orientação sobre o modo de organizar futuramente sua comunidade. No final do mês de setembro de 1522, ele visitou a comunidade, quando deliberaram a respeito da introdução de um estatuto comunitário evangélico. Posteriormente, quando a comunidade quis investir em seu ofício dois pregadores, surgiram dificuldades de cunho jurídico-eclesiástico. O patronato sobre a cidade pertencia, desde muito, ao abade do mosteiro cisterciense de Buch, localizado nas proximidades de Leisnig. Em face da situação, a comunidade soube argumentar no sentido da Reforma, invocando o direito oriundo de Cristo para que a comunidade chame ou destitua pregadores.
Em outubro de 1522, Lutero realizou prédicas na cidade de Weimar, que redundaram numa espécie de esboço do escrito “Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência” (1523) e, também, incluíram importante reflexão sobre o sacerdócio geral de todas as pessoas crentes. Justamente acerca disso foi que Lulero, em boa medida, se manifestou a pedido da gente de Leisnig. Autorizados pela comunidade, dois representantes se dirigiram a Lutero com o pedido de que “confirmasse seu ministério paroquial” por meio de um escrito. Lutero respondeu ao escrito de uma maneira mais geral, sem se limitar de modo exclusivo à situação de Leisnig, embora o quadro que lá se configurava e a solução de um estatuto comunitário tenham servido de pano de fundo. Nesse meio tempo, os dois pregadores evangélicos, Sebastião de Kötteritzsch e Francisco Salbach, redigiram o esboço do que viria a ser um Estatuto para uma Caixa Comunitária, posteriormente, editado e prefaciado por Lutero. Além disso, Lutero também escreveu “A Ordem do Culto na Comunidade”, atendendo à solicitação feita na mesma carta de fins de janeiro.
O escrito abaixo precisa ser visto sob o pano de fundo jurídico-eclesiástico de então. Lutero afirma que o direito da comunidade precede ao direito do papado e do Bispado. Com isso avança na crítica já promovida contra a autoridade espiritual não-evangélica no panfleto dirigido à nobreza cristã da Alemanha, em 1520. Muitas vezes Ignorado pela pesquisa histórica, o presente escrito que afirma o direito da comunidade cristã de julgar toda doutrina, chamar, nomear e demitir pregadores, enfraquece a Opinião bastante difundida de que Lutero teria meramente concordado com o domínio do governo secular sobre a Igreja. Para compreender a situação jurídico-eclesiástica é preciso considerar as estruturas patriarcais de poder de então e, especialmente, a base bíblica a partir da qual Lutero se manifesta em relação a um novo ordenamento da comunidade, que fosse coerente com a perspectiva do Evangelho. A comunidade de Leisnig se caracterizava em muito pela incapacidade de seus membros seguirem o Proposto por Lutero para sua reestruturação. A concepção do reformador, justamente por causa disso, foi considerada por muitos extremamente utópica. Isso o próprio Lutero acaba confirmando, em outro contexto, no prefácio à “Missa Alemã e Ordem do Culto” (1526), quando diz ainda não haver gente que decididamente colocasse em prática os princípios evangélicos nas comunidades. Por isso mesmo, esse escrito permanece sendo uma contribuição excepcional para a discussão do problema permanente da relação entre ministério e comunidade.
Não há uma data exata para sua publicação. Com base numa reimpressão feita em Zwickau, calcula-se que a primeira edição, preparada na gráfica de Lucas Cranach e Cristiano Döring em Wittenberg, seja de fins de abril ou começo de maio de 1523. O escrito integra as principais edições e obras de Lutero lançadas na Alemanha e fora dela.
O conteúdo de “Direito e Autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores — Fundamento e Razão da Escritura” pode ser distribuído da seguinte estrutura:
(Esboço e notas suprimidas - suprimido)

Em primeiro lugar, é necessário saber onde fica e qual é a comunidade cristã, para que não aconteça (como os não-cristãos sempre estiveram acostumados) que pessoas empreendam negócios humanos sob o nome da comunidade cristã. A comunidade cristã deve ser reconhecida, sem sombra de dúvida, na pregação do Evangelho puro. O estandarte do exército é um sinal seguro pelo qual se reconhece quem é o senhor e qual o exército que está em campo. Da mesma forma também é no Evangelho que se reconhece, com certeza, onde estão Cristo e seu exército. Para isso lemos a segura promessa de Deus em Isaías 55[.10s.]: “A palavra (diz Deus) que sair da minha boca, não voltará para mim vazia, mas, cai do céu para a terra e a frutifica, assim também minha palavra realizará tudo para que a envio.” Daí temos certeza de que é impossível não haver cristãos ali onde anda o Evangelho, por menor que seja o seu número e, por mais pecaminosos e frágeis que sejam; da mesma forma, é impossível que haja cristãos e não somente pagãos ali onde não está o Evangelho e dominam doutrinas humanas, sejam quantas forem e por mais santas e excelentes que elas se apresentem.
Disso se conclui, sem dúvida alguma, que os bispos, conventos, mosteiros e o que há de gente desta espécie nem de longe têm sido cristãos, tampouco uma comunidade cristã, mesmo que tenham reivindicado esse nome sozinhos, antes de todos os outros. Pois quem reconhece o Evangelho, vê, ouve e entende como ainda hoje eles permanecem em suas doutrinas humanas e jogaram fora, por inteiro, o Evangelho e ainda continuam jogando. Por isso é preciso considerar pagão e mundano o que essa gente faz e alega.
Em segundo lugar, nessa questão de julgar doutrina, admitir e demitir professores ou pastores, não se deve ligar em nada para lei humana, direito, tradição antiga, costume, hábito, etc., tanto faz se fixados pelo papa [409] ou imperador11, príncipe ou bispo, tanto faz que meio mundo ou o mundo inteiro assim o faça, ou se isso perdura por um ou mil anos! Porque a alma da pessoa é algo eterno, está acima de tudo que é temporal; por isso ela deve ser regida e provida apenas pela palavra eterna. Pois é deplorável reger as consciências perante Deus com base em direito humano e em costume de longa data. Por isso é preciso agir neste ponto de acordo com a Escritura e a Palavra de Deus. Pois Palavra de Deus e doutrina humana se querem dirigir à alma, — e jamais poderá ser diferente —conflitam entre si. Queremos demonstrá-lo claramente na presente questão, ou seja, da seguinte forma;
Palavra e doutrina humana fixaram e determinaram que o julgamento da doutrina deve ser delegado exclusivamente aos bispos, eruditos e concílios; o que os mesmos resolvessem, isto todo o mundo deveria considerar certo e como artigo de fé, conforme o demonstram de sobejo seu diário vangloriar-se sobre o direito espiritual do papa. Pois quase nada mais se ouve deles senão essa fanfarronice de que com eles está o poder e o direito de julgar o que é cristão ou herético, e que o cristão simples deveria esperar por seu parecer e se orientar de acordo. Veja como essa presunção, que é seu sustentáculo e baluarte supremo, com a qual atemorizaram todo mundo, investe descarada e tolamente contra a lei e a Palavra de Deus!
Pois Cristo determina precisamente o contrário e tira dos bispos, eruditos e concílios ambas as coisas, tanto o direito como o poder de julgar a doutrina, dando- os a todo mundo e a todos os cristãos de modo geral, ao dizer em Jo 10[.27]: “Minhas ovelhas ouvem a minha voz”; igualmente [v. 5]; “Minhas ovelhas não seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”; ou [v.8]: “Todos quantos vieram antes de mim, são ladrões e salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido,”
Aqui vês bem claramente quem tem o direito de julgar a doutrina: bispo, papa, erudito e todo mundo tem poder de ensinar, mas as ovelhas devem julgar se ensinam a voz de Cristo ou a dos estranhos. Meu caro, que podem dizer contra isso as bolhas d’água que tagarelam por aí: “Concílios, concílios, ah, é preciso ouvir os eruditos, bispos, o povo, devemos levar em consideração o velho uso e costume”? Achas que para mim a Palavra de Deus deveria ceder lugar a seu velho uso, costume e bispos? Jamais! Por isso deixamos que os bispos e concílios resolvam e determinem o que quiserem. Mas onde tivermos a Palavra de Deus a nosso favor, cabe a nós e não a eles [julgar] se é [410] justo ou injusto, e eles é que devem ceder a nós e obedecer à nossa palavra.
Aqui se vê com suficiente clareza, penso eu, o quanto se pode confiar naqueles que lidam com as almas segundo a palavra humana. Quem é que não vê aqui que todos os bispos, capítulos, mosteiros e escolas superiores com tudo o que lhes pertence se revoltam contra esta clara Palavra de Cristo, de forma a privarem descaradamente as ovelhas do julgamento sobre a doutrina, apropriando-se dele eles mesmos por própria determinação e arbitrariedade? Por isso, com toda certeza, também devem ser considerados assassinos e ladrões, lobos e cristãos apóstatas, uma vez que aqui está demonstrado de público que não somente negam a Palavra de Deus, mas também se colocam e agem contra ela; como, aliás, cabe ao anticristo e seu reino, conforme a profecia de S. Paulo, 2 Ts 2[.3s.].
Mais uma vez diz Cristo em Mt 7[.15j: “Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas; mas por dentro são lobos roubadores.” Vê, aqui Cristo delega o julgamento não aos profetas e mestres, mas aos alunos ou ovelhas, bois como seria possível acautelar-se aqui dos falsos profetas, sem considerar sua doutrina, julgá-la e avaliá-la? Da mesma forma, não pode haver falso profeta algum entre os ouvintes e, sim, apenas entre os que ensinam. Por isso todos os professores devem e têm que estar sujeitos com sua doutrina ao parecer dos ouvintes.
A terceira passagem é de S. Paulo em 1 Ts 5[.21]: “Julgai todas as coisas, retende o que é bom”. Vê, aqui ele quer que não seja mantida nem doutrina nem sentença que não seja examinada e reconhecida como boa pela comunidade que a ouve, Pois esse exame, de qualquer forma, não se refere aos professores e, sim, os professores primeiro têm que dizer aquilo que deve ser examinado. Portanto, também aqui o julgamento é tirado dos professores e dado aos alunos, entre os cristãos; dessa forma, entre os cristãos a coisa é bem diferente que no mundo. No mundo, os senhores mandam o que querem e os súditos obedecem. “Mas entre vós”, diz Cristo, “não seja assim” [Mt 20.26]. Entre os cristãos, cada um é juiz do outro e, inversa- mente, também sujeito ao outro, apesar de os tiranos clericais terem feito da cristandade uma autoridade secular.
O quarto enunciado é novamente de Cristo, em Mt 24[.4J: “Vede que ninguém vos engane, Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo, e enganarão a muitos.” Em suma, que necessidade há [411] de apresentar mais citações ainda? Todas as advertências feitas por S. Paulo, Rm 16[.13,18]; 1 Co 10[.14]; Gl 3[.l- 5] 4[.12-20]; 5[.1-15]; Cl 2[.8] e, por toda parte, e ainda afirmações de todos os profetas que ensinam a evitar doutrina humana: eles nada mais fazem do que tirar dos professores o direito e a autoridade de julgar toda doutrina e os atribuem aos ouvintes, como ordem a ser levada a sério, sob pena de se perder a alma. Portanto, os ouvintes não só têm o poder e o direito de julgar tudo que é pregado, mas também o dever, sob o risco de caírem na desgraça de Deus. Nisso vemos quão pouco cristão é o procedimento dos tiranos conosco, ao nos tirarem semelhante direito e ordem e tomando-os para si mesmos. Só com isso já mereceram fartamente a expulsão da cristandade e serem tocados para longe como lobos, ladrões e assassinos que nos ensinam e dominam contra a Palavra e vontade de Deus.
Por conseguinte, concluímos então que, onde houver uma comunidade cristã que possua o Evangelho, ela não só tem o direito e a autoridade, mas também, pela salvação de sua alma e segundo o compromisso que ela assumiu para com Cristo no Batismo, o dever de evitar, demitir, fugir e subtrair-se da autoridade que agora ocupam os bispos, abades, mosteiros, cabidos e semelhantes: porque está visto que ensinam e governam em oposição a Deus e sua Palavra. Com isso esteja fundamentado, para começar, com segurança e vigor suficientes, e nisso se pode confiar: é direito divino e necessário para a salvação das almas que se deponham ou evitem semelhantes bispos, abades, mosteiros e o que há de instituições desse tipo.
Em segundo lugar: Como, porém, uma comunidade cristã não pode nem deve ficar sem a Palavra de Deus, segue do precedente com suficiente evidência que eia, mesmo assim, precisa de professores e pregadores para promover a Palavra. Nestes últimos tempos malditos, os bispos e o falso regime espiritual não são nem querem ser tais professores, tampouco os querem fornecer nem tolerar. E como não se pode tentar a Deus com o pedido de enviar novos pregadores do céu, nós mesmos temos que proceder conforme a Escritura e convocar e instituir aqueles dentre nós que são idôneos para isso e os quais Deus iluminou com entendimento e ainda dotou de talentos.
Pois isto ninguém pode negar, que cada cristão tem a Palavra de Deus e foi instruído e ungido por Deus para ser sacerdote, como diz Cristo cm Jo 6[.45|: “Serão todos instruídos por Deus”, e Salmo 44[sc. 45.7]: “Deus te ungiu com o óleo da alegria como a nenhum dos teus semelhantes”. Esses companheiros [412] são os cristãos, irmãos de Cristo, que com ele estão ordenados sacerdotes, como também diz Pedro, em 1 Pe 2[.9]: “Vós sois o sacerdócio real, para que proclameis os benefícios daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz.”
Tendo eles a Palavra de Deus e sendo por ele ungidos, também têm o dever de confessar, ensinar e difundi-la, como diz Paulo em 1 Co 4[sc. 2 Co 4.13]: “Nós, entretanto, temos o mesmo espírito da fé, por isso também falamos”, e o profeta, no Salmo 116[.10]: “Eu cri, por isso é que falo”; e no Salmo 51 [.13] ele diz de todos os cristãos: “Ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti.” Portanto, fica assegurado aqui, mais uma vez, que um cristão não só tem o direito e a autoridade para ensinar a Palavra de Deus, mas que ele tem o dever de fazê-lo, sob pena de perder sua alma e cair na desgraça de Deus.
Replicarás então: Mas como? Se não estiver convocado para isso, ele não pode pregar, como tu mesmo ensinaste muitas vezes. Resposta: Aqui deves considerar o cristão em duas situações diferentes. Primeiro: Se ele estiver num lugar em que não há cristãos, não é necessária qualquer convocação senão o simples fato de ele ser cristão, convocado e ungido interiormente por Deus. Nesse caso, tem a obrigação de pregar aos pagãos ou não-cristãos que estão no engano e ensinar-lhes o Evangelho por dever de amor fraternal, mesmo que nenhuma pessoa o convoque para esse fim. Assim agiu Sto. Estêvão, At 6[.8,10], 7[.2ss.], que de forma alguma fora incumbido do ministério de pregação pelos apóstolos, mas assim mesmo pregou e realizou grandes sinais entre o povo. No mais, da mesma forma agiu Filipe, o diácono, companheiro de Estêvão, At 8[.5], sendo que ele tampouco fora incumbido do ministério da pregação. De igual modo procedeu Apoio, At 18[.25s]. Pois num caso desses, um cristão enxerga, em amor fraternal, a necessidade das pobres almas em perigo e não espera que príncipes ou bispos lhe deem ordem ou cartas [de recomendação]. Porque a necessidade rompe todas as leis e não tem lei. Assim, o amor tem o dever de ajudar onde, no mais, não há ninguém que ajude ou devesse ajudar.
Segundo: Se, entretanto, estiver num lugar em que há cristãos, os quais junto com ele têm a mesma autorização e direito, ele não deve projetar a si mesmo. Espere até que seja convocado e escolhido para pregar e ensinar no lugar e por ordem dos demais. Sim, um cristão tem tanta autoridade que até no meio de cristãos pode e deve entrar em cena [413] e ensinar, mesmo que não convocado por pessoas, quando vê que o professor ah está ensinando errado; entretanto, que se proceda de forma educada e decente. Isso S. Paulo o descreveu claramente em 1Co 14[.30] onde diz: “Se algo é revelado àquele que está sentado, o primeiro, o que está a falar, deve calar-se.” Vê só o que S. Paulo faz aqui: no meio dos cristãos ele manda calar e retirar-se aquele que está ensinando, para que se levante aquele que ouve, mesmo sem estar convocado. Tudo isso porque necessidade não conhece mandamento.
Assim, S. Paulo propõe aqui que, se necessário, qualquer um pode apresentar- se no meio dos cristãos, mesmo sem estar convocado. Por semelhante Palavra de Deus, ele está convocado, fazendo o outro ceder e o depondo por força dessas palavras. Quanto mais não será correto que toda uma comunidade convoque alguém para semelhante ministério, quando for necessário. Isso, aliás, sempre foi o caso e, principalmente, agora. Pois na mesma passagem S. Paulo autoriza qualquer cristão a ensinar entre cristãos, se for necessário, e diz: “Podeis profetizar todos, um após o outro, para que todos aprendam e todos sejam exortados” [1Co 14.31]. E mais: “Deveis procurar profetizar, e não impeçais que se fale em línguas; mas fazei tudo de forma ordeira e decente” [1Co 14.39s.].
Que esta passagem sirva de argumento que não deixa dúvidas sobre o poder superabundante da comunidade cristã de pregar, fazer pregar e convocar. De modo especial, em caso de necessidade, esta própria passagem convoca a qualquer um, inteiramente sem convocação por pessoas; pois não devemos ter dúvida de que a comunidade que tem o Evangelho, pode e deve escolher e convocar em seu próprio meio aquele que ensina a Palavra em seu nome.
Se, porém, objetas: S. Paulo mandou Timóteo e Tito nomear presbíteros. Da mesma forma, lemos também em At 14[.23J que Paulo e Barnabé ordenaram presbíteros entre as comunidades. Por essa razão, a comunidade não pode convocar alguém, tampouco pode alguém projetar-se a si mesmo para pregar entre os cristãos. E preciso que se tenha a permissão e a ordem dos bispos, abades ou de outros prelados que estão no lugar dos apóstolos. Resposta: Se os nossos bispos e abades, etc. estivessem no lugar dos apóstolos, como pretendem, seria uma opinião justificada esta de que se deveria permitir-lhes fazerem o que fizeram Tito, Timóteo, Paulo e Barnabé em relação à nomeação de presbíteros, etc. Como, porém, eles estão no lugar do diabo e são lobos que não querem nem ensinar nem aturar o Evangelho, o provimento do ministério da pregação e da cura de almas entre os cristãos diz respeito a eles tanto quanto aos turcos e judeus. Eles que toquem burros e conduzam cachorros!
[414] Além disso, se realmente fossem verdadeiros bispos que tivessem o Evangelho e quisessem nomear verdadeiros pregadores, ainda assim, não poderiam nem deveriam fazê-lo sem a vontade, escolha e convocação da comunidade; a não ser que a necessidade o imponha, para que as almas não se desvirtuem por carência da Palavra de Deus. Pois, para o caso de semelhante necessidade, já ouviste que não só pode qualquer um providenciar um pregador, seja por solicitação ou pelo poder da autoridade secular, mas, sim, ele mesmo também pode acorrer, apresentar-se e ensinar, se puder. Pois necessidade é necessidade e não tem medida, da mesma forma como todo mundo deve acorrer e tomar providências quando houver incêndio na cidade e não ficar esperando até que alguém o solicite.
Nos outros casos, onde não houver semelhante necessidade c houver pessoas disponíveis que têm o direito e a autoridade e a graça de ensinar, nenhum bispo deve nomear a alguém sem a escolha, vontade e convocação por parte da comunidade. Deve antes confirmar o eleito e convocado da comunidade. E mesmo que não o faça, o mesmo estará confirmado pela convocação da comunidade. Pois nem Tito, nem Timóteo, nem Paulo jamais nomearam um presbítero sem escolha e convocação da comunidade. Isso fica claramente comprovado pelo fato de ele dizer em Tt 1 [.7] e 1Tm 3[.2,10] que um bispo ou presbítero deve ser irrepreensível e os diáco- nos, primeiro devem ser examinados. Agora, Tito não terá tido conhecimento de quais teriam sido irrepreensíveis; esse testemunho tem que proceder da comunidade, esta é que tem que propor alguém.
Assim também lemos em At 4 [sc. 6.2ss.] que os próprios apóstolos não puderam nomear pessoas como diáconos, um cargo de importância muito menor, sem o conhecimento e a vontade da comunidade. E, sim, foi a comunidade que escolheu e convocou os sete diáconos, sendo que os apóstolos os confirmaram. Se é assim, que os apóstolos não podiam, por determinação própria, fazer nomeações para semelhante cargo, destinado apenas à distribuição de alimento temporal, como haveriam de ser tão audaciosos a ponto de delegar a alguém por própria determinação, o mais alto ministério, o da pregação, sem o conhecimento, a vontade e a convocação da comunidade?
Como, porém, em nosso tempo, há necessidade e não há um bispo que providencie pregadores evangélicos, de nada vale aqui o exemplo de Tito e Timóteo. É preciso convocar de dentro da comunidade, tanto faz se é confirmado por Tito ou não. Pois assim também teriam ou deveriam ter agido aqueles que Tito provia, caso Tito não o quisesse confirmar ou não [415] houvesse ninguém que nomeasse prega dores. Por isso, o tempo presente é totalmente diferente dos tempos de Tito, quando os apóstolos estavam na direção e queriam ter bons pregadores; agora, entretanto, nossos tiranos querem somente lobos e ladrões.
E por que nos condenam os tiranos vociferadores por causa dessa eleição e convocação? Eles mesmos agem dessa forma e têm que fazê-lo. Jamais alguém dentre eles se torna papa ou bispo sendo nomeado segundo a vontade de qualquer um, mas ele é eleito e convocado pelo cabido, cm seguida confirmado por outros: o bispo, pelo papa como seu superior; ele, porém, o próprio papa, pelo cardeal de Óstia como subordinado seu. E mesmo que aconteça que alguém não seja confirmado, ainda assim ele é bispo e papa*. Pergunto então aos caros tiranos: Se a eleição e convocação de sua assembleia faz alguém bispo, e o papa é papa sem qualquer confirmação de qualquer outra autoridade, somente pela eleição, por que uma comunidade cristã não haveria de constituir um pregador somente por uma convocação? Eles consideram o estado do bispo e do papa mais alto do que o ministério da pregação. Quem lhes deu esse direito e no-lo tirou? Isto que nossa convocação tem a Escritura a apoiá-la, ao passo que a convocação por parte deles é pura invenção humana, sem base na Escritura, com o que nos roubam nosso direito. Tiranos é que eles são, e malfeitores que nos tratam como convém aos apóstolos do diabo.
Por isso também se conservou o seguinte uso: em diversos lugares, autoridades seculares, como conselheiros municipais e príncipes, empregaram e pagaram para si mesmos pregadores em suas cidades e seus palácios. Eles mesmos os procuraram sem qualquer permissão ou ordem dos bispos e papas; e também ninguém fez qualquer objeção. Se bem que deixaram de objetar (temo eu) não por sua compreensão do direito cristão, mas porque os tiranos clericais desprezaram o ministério da pregação e não lhe deram valor, dando-lhe uma posição bem à parte do regime clerical, apesar de se tratar do ministério supremo, do qual dependem todos os demais. Novamente, onde não houver o ministério da pregação, não há nenhum dos outros a lhe suceder. Pois João 4[.2] diz que Cristo não batizou, mas apenas pregou. E Paulo, em 1Co 1[.17] se gloria de não ter sido enviado para batizar, mas para pregar.
Por isso, a quem foi confiado o ministério da pregação, a ele é confiado o supremo s ministério na cristandade. O mesmo, então, também pode batizar, oficiar a missa [416] e cuidar de toda a cura de almas, ou, caso não queira, pode ficar somente com a pregação o deixar Batismo e outros ministérios interiores para outros, como o fizeram Cristo e Paulo e todos os apóstolos, At 6[.4]. Nisso se pode perceber que nossos bispos e clérigos de agora são ídolos e não bispos. Pois o supremo ministério da Palavra, que deveria sei o seu próprio, eles o deixam com os inferiores, com capelães e monges terminários e, ainda, os ministérios de importância menor, como batizar e outras coisas pertinentes à cura de almas. Eles, enquanto isso, ficam crismando e consagrando sinos, altares e igrejas, o que não são atos nem cristãos nem episcopais, e, sim, inventados por eles mesmos. São mascarados, desvirtuados e ofuscados, e bons bispos infantis.

Obras Selecionadas de Lutero, v. 7, pp 25 a 36
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